Excelente texto. Sou cristão. Não acho que alguém deva escolher ser cristão; acredito que as pessoas devem buscar pela verdade, e não crer por conveniência. Eu não escolhi crer, só creio.
Depois de quinze anos estudando o tema do Jesus histórico e lendo autores como Bart Ehrman, que você citou, obviamente deixei de ser fundamentalista e também de ser inerrantista bíblico. Mas continuo, sim, cristão.
O meu cristianismo, embora possa parecer “agradável” — entre aspas — por excluir inferno e outros elementos, não é fruto do meu desejo pessoal, mas do meu entendimento das Escrituras, das quais, como disse, não creio serem inerrantes. Já tentei deixar Sam Harris me convencer de que o cristianismo é imoral, mas o cristianismo contra o qual ele combate não é o que eu creio. https://rascunhosdenovembro.substack.com/p/16-o-cristianismo-e-imoral-respondendo
De qualquer forma, para mim, alguém que possua uma moral e uma ética enraizadas na lei natural é mais "cristão" do que alguém que apenas se confessa cristão, afinal, "tive fome, e destes-me de comer".
Se tu fosse atrás da verdade da Bíblia buscando na Bíblia acho que seria a melhor investigação jornalística. Agora tu falar que "perdeu" a fé com 13 anos é complicado. Eu comecei a entender o plano da salvação com 15 anos. Antes disso fui da igreja católica e aos 10 da presbiteriana e foi nessa que me convertí. Onde minhas dúvidas foram sendo respondidas aos poucos.
Uma dúvida. Dado que você é ateu, sua metafísica é a naturalista ou materialista ou fisicalista; ou seja: o fundamento da realidade são coisas físicas regidas por leis mecânicas. Disso se levantam várias questões (na realidade, um cipoal de problemas elusivos). O primeiro - e mais complexo, que nunca vi um ateu responder (e eu leio filósofos ateus sofisticados) - é em relação à contingência: suponhamos que o Universo é eterno (se é eterno ou não, tanto faz); o Universo, sendo eterno, é contingente; tudo o que é contingente não possui sua própria causa, sua própria existência de sua própria natureza; algo que não possui, ontologicamente, a causa de sua própria existência, depende de outra coisa para existir; portanto, o Universo depende de algo mais nevrálgico para existir. Clarificando esta questão com uma analogia. Isto é o mesmo que as luzes solares fossem eternas: elas, ainda assim, precisariam do Sol para causá-las continuamente, para atualizá-las continuamente na existência, uma vez que elas não têm poderes causais para mantê-las na existência; em outras palavras, são ontologicamente pobres. Disso se segue que não adianta, por exemplo, apelar para uma regressão infinita: não se explica a existência, uma vez que nenhum evento é causa de sua existência, apenas que os eventos são eternos no passado. Uma resposta que vi a esse problema foi de John Leslie Mackie - grande filósofo analítico da Religião, que eu admiro -: o que é primordial é um pedaço de matéria, e, a partir disso, podemos então explicar a evolução, o Universo e a Vida; e esta explicação é a mais parcimoniosa, uma vez que não precisamos postular a existência de um Deus. Muito bom. Excelente. Fantástico. Contudo, se levanta um problema insoluvelmente elusivo: seja um pedaço de matéria, seja uma partícula fundamental, isto ainda é contingente. Com efeito, Mackie aceita um fato bruto; contudo, é algo sumamente ilógico; visto que se é aceito uma partícula fundamental (ou qualquer outra coisa física ou estado mental) como fato bruto, essa coisa carrega consigo uma necessidade metafísica, sendo, todavia, contingente. Assim, o ateísmo se fundamenta em uma Contingência Absoluta - o que é, deveras, contraditório.
O segundo problema é da consciência intencional. Dado que o fundamento da realidade para o ateísmo são estados físicos ou mentais (pode ser um naturalismo idealista) mecânicos, sem significado, discretos, ilógicos e soltos, o que ocorre é que essa metafísica não consegue explicar o fenômeno da consciência intencional - que é totalmente contrária à sua base subveniente -: teleológica, significativa, unitária, lógica e coerente. Pior: não consegue sustentar a Razão, na medida em que a Intencionalidade é uma característica da Razão. Não adianta apelar a dualismos de propriedades, a panpsiquismos naturalistas, a naturalismo biológico, a funcionalismo, enativismo etc. porque todos sustentam a metafísica naturalista sobredita. Por conseguinte, o ateísmo precisa sustentar uma tese da mente (claro, tácita) que é um dualismo de substâncias: há o res cogitans e o res extensas; no entanto, é um mistétio como a Matéria e a Mente interagem; e, como diz David Bentley Hart, a Razão abomina o dualismo (e eu digo que abomina também o ateísmo, ou naturalismo, ou materialismo ou fisicalismo).
Esses "ismos" filosóficos, que vieram para "zipar" ideias complicadas em termos mais digeríveis, com frequência servem para confundir, em vez de esclarecer.
Já tive essa intuição de Mackie — que, ainda que aceitemos os argumentos clássicos sobre Prima Causa, não há garantia nenhuma de que a entidade descrita seja um Deus pessoal com as propriedades mentais e intencionais que querem os religiosos.
Mas eu não preciso me comprometer com "materialismo", seja lá o que esse termo ainda significa depois da compreensão da matéria ter evoluído tanto desde quando foi cunhado. Nem com "fisicalismo", pois está claro que a física tem muito a descobrir. Já "naturalismo" parece mais plausível, no sentido de que "sobrenatural" é um termo tão vago que qualquer tentativa de descrever acaba por naturalizar.
Até onde sou capaz de entender os limites da física (e não é uma grande capacidade minha), o que eles parecem sugerir é que, se um dia teremos teorias amplas da natureza do próprio universo, para além de teorias mais limitadas sobre como funcionam organismos e espécies, fluidos e sólidos, compostos orgânicos e íons, partículas e ondas, essas teorias amplas precisarão reformar nosso entendimento do que é a própria causalidade.
O que eu chamo de "amplo" aqui é o que está muito fora da nossa experiência, tanto na escala grande quanto na pequena, e que faça avançar o projeto do reducionismo ontológico em que poucos princípios expliquem muita coisa da realidade. (Não acredito em reducionismo teórico no sentido dos positivistas lógicos, não acho que dá para reescrever a teoria da evolução falando só de ondas e partículas, não acho que o avanço do conhecimento consiste em áreas menos fundamentais se ajoelhando perante as mais fundamentais ao ponto de não precisarem de teorias próprias.)
Assim, o que parece é que começamos a bater à porta dos limites da cognição humana. Então, distinções como necessário/contingente, particular/universal, monismo/pluralismo, substância/atributo, abstrato/concreto começam a falhar, como as próprias teorias que tentam unir partículas à gravidade falham hoje.
Michael Oakeshott, em um ensaio de crítica a quem ele chamou de "racionalista moderno", disse isso: "Ele não dispõe da capacidade negativa (a qual Keats atribuiu a Shakespeare), o poder de aceitar os mistérios e as incertezas da experiência, livre da irritante busca por ordem e distinção."
Aceito os mistérios e as incertezas do universo que me cerca. Por isso mesmo, quando avalio a ideia de divindade, que apesar de revisionismos e ressignificações como a de Spinoza sempre significou algo como "mentes sobrenaturais mais poderosas que a mente humana", olho para as origens mais prováveis da mente humana, que são as evolutivas, e é a partir daí que concluo que deuses são improváveis. De forma análoga à qual eu concluiria que são improváveis aves com glândulas mamárias, ou morcegos com penas. É uma inferência indutiva até modesta, muito diferente de me comprometer com grandes teses sobre a origem do Universo.
O que isso significa para a base da realidade eu simplesmente não sei, até porque não acredito que a base da realidade contenha a consciência, pois é fenômeno emergente de coisas que só apareceram no Universo tardiamente, há menos de um bilhão de anos.
Essa ideia de origem natural da mente conforme seres simples se tornaram mais complexos não me compromete, também, com teorias específicas sobre a consciência. Eu não sei o que é a consciência, no fim das contas, só desconfio que depende do substrato dado aos cérebros — o que explica por que razão a consciência se altera em resposta a interferências físicas como beber álcool ou estar com sono.
A minha postura está muito mais em conformidade com a aceitação de mistérios do que o teísmo cristão, por exemplo, pois, apesar do uso da palavra "mistério" na liturgia católica, por exemplo, isso vem com muito mais conclusões e alegações epistêmicas, muito mais certezas do que permitiriam mistérios verdadeiros.
O que eu disse no meu texto é que reconheço que pessoas podem coletar um conjunto de "dados", para usar uma metáfora computacional, com qualidade semelhante aos que eu coletei, e concluir de forma diversa da minha, sendo essa conclusão perfeitamente racional. Eu não diria que poderiam concluir de forma diversa com os MESMOS dados, porque não acredito naquela tese atribuída a Quine da "subdeterminação teórica" (que, mesmo com todas as observações possíveis disponíveis, haveria mais de uma teoria para explicar o mesmo fenômeno).
Enquanto eu reconheço que o teísmo pode resultar da racionalidade, você alega que a "Razão" (com R maiúsculo, à moda de Robespierre) é incompatível com o ateísmo.
O que eu suspeito é que você, em suas leituras, superestima a importância de silogismos clássicos dos filósofos que buscaram provar que Deus existe. O que é uma empreitada e tanto, dado que, em última análise, Deus é parte da realidade e a maior parte das verdades sobre a realidade (pressupondo que você não é idealista ou que adote alguma outra forma de antirrealismo forte) não são possíveis de se obter a priori. Se fosse, as ciências empíricas não teriam sido necessárias, não teriam contribuído com nada de valor.
Se me permite um conselho, eu ouviria um bom filósofo a respeito de como padrões observados pelas ciências empíricas podem afetar o resto do pensamento. "A Perigosa Ideia de Darwin", de Daniel Dennett, por exemplo, mostra como a seleção natural afetou muito mais que nosso entendimento da origem das espécies, se dermos a ele a chance filosófica que ela merece.
Eu me engajo em debate com teístas há 21 anos. Já ouvi tudo sobre silogismos tomistas, necessidade e contingência, recursão causal, pedras inamovíveis. No fim das contas, assim como Dawkins pergunta "mas é verdade?" para Ayaan Hirsi Ali, eu pergunto "e onde isso aí mostra uma entidade preocupada com a vida humana, que guiou a seleção natural para o aparecimento da nossa espécie, que deu seu único filho para pagar pelos pecados alheios etc. etc."? A crença religiosa é invariavelmente mais ousada e menos parcimoniosa que minha crença probabilística no ateísmo.
O problema é que para você estabelecer o seu ateísmo, você precisa compreender conceitos; e então a probabilidade estabelecer o ateísmo como o mais provável. E é essa a segunda objeção que eu fiz - e que você assume -: que nossa consciência foi gerada por processos mecânicos. Entenda aqui que estou objetando não a Evolução, mas a metafísica subjacente: o mecanicismo. O problema, novamente, é que dado a assunção sua de que o que é mais primordial - seja probabilisticamente ou não - é a fisicalidade, dado a ateísmo ou naturalismo, no mundo da física não há propósito e lógica - que é fulcral para a mente. Ou seja: a base subveniente tem características que a base superveniente não tem. E não adianta apelar para o tempo evolutivo - isto é falácia pleonástica -: mesmo que durasse trilhões de anos, ainda assim seria logicamente impossível emergir consciência fenomenal e intencional. E sim você se compromete com uma tese da mente: o emergentismo forte, conforme você sustentou em relação à evolução gerar a consciência. Na realidade, está mais para uma tese metafísica. Esse emergentismo é o mesmo que você ver uma estátua de ouro e dizer que a estátua de ouro emergiu de concreto em um processo evolutivo que durou bilhões de anos. Não faz sentido. Um átomo mais um átomo não gera consciência; bilhões de átomos reunidos também não gerarão. Como disse, é uma falácia pleonástica.
Sobre o fundamento da realidade ser Deus, eu, na realidade, não argumentei que o fundamento da realidade é o Deus cristão; o que eu argumentei foi que se aceitar o ateísmo, o preço intelectual é muito alto - conforme eu argumentei. Além disso, a questão é se o fundamento da realidade é um Ser Necessário - não importa se é o deus cristão, islâmico, vedanta etc - ou se são coisas contingentes regidas por leis cegas. E isso é uma questão metafísica - e não probabilística. Mas, novamente, mesmo que se tente estabelecer que probabilisticamente o ateísmo é mais plausível, você pressupõe várias coisas: que há um mundo exterior à sua mente; que sua mente consegue compreender a probilidade, as leis naturais, a semântica das palavras; que sua mente tem algum nível de confiança; que sua mente é capaz de raciocinar a partir de premissas levando a conclusões. E, desse modo, são estes pressupostos que precisam ser discutidos; e o segundo problema que levantei consiste nesses pressupostos. O que você faz (como vários naturalistas, inclusive o Dennett, que eu já li) é simplesmente assumir uma metafísica e, a partir dessa metafísica, interpretar a ciência e o conhecimento. Claro, você pode estar certo; mas é necessário refletir se a metafísica subjacente está correta.
Sobre o que você disse concernente aos limites da cognição humana é problemático em dois sentidos: não é científico, porque não há evidências suficientes e, sobretudo, na realidade, é um pressuposto filosófico. Veja, se você estiver certo (quem sabe?), é necessário estabelecer por que há esses limites; e isso consiste em apontar uma ontologia cognitiva, ou seja, que nada mais é, por exemplo, dizer que nosso aparato cognitivo tem esta e essa limitação em razão, por exemplo, de nossas estruturas biológicas, físicas, químicas e que, com efeito, tais estruturas moldam nossa percepção e limitam o nosso conhecimento; a partir desse pressuposto ontológico, você então estabelece os limites do conhecimento. O problema é que é só uma alegação, e nada mais.
E eu vejo que você endossa o naturalismo das lacunas: talvez um dia teremos teorias amplas que mudarão nosso entendimento da causalidade etc. Veja, pode ser que você esteja certo; mas o problema desse argumento é que ele é o inverso do deus das lacunas.
Outra coisa é que eu não assumo que a mente é sobrenatural; não faz sentido; a mente é natural. Além disso, não endosso a distinção entre natural e sobrenatural: para mim só há uma realidade. A distinção de sobrenatural e natural é algo muito moderno: os antigos gregos e medievais não faziam essa distinção - que é algo da Filosofia Moderna, sobretudo em razão, entre outras, do dualismo cartesiano.
E aceitar os mistérios é algo que eu também aceito. O que eu afirmo não tem nada a ver com infabilismo e ilimitação epistêmica; é somente uma reflexão das consequências lógicas do ateísmo. E não, não um argumento priori: é simplesmente a posteriori, dado o conhecimento que temos da estrutura do Universo, da natureza do comportamento dos seres humanos, do poder da Razão etc. Sobre o ensaio do Oakeshott, na realidade isso não se aplica a mim porque eu não sou racionalista. Muito pelo contrário. Para mim nós podemos discutir essas grandes questões; no entanto, o significado delas não se esgotam no conceito - vão muito além. Pense, por exemplo, no conceito de estética. Há livros que falam sobre a experiência estética na filosofia da Arte. Isso é possível porque há, de fato, uma objetividade que, com efeito, possibilita criar conceitos universais. Não obstante, esses conceitos universais e objetivos não esgotam a experiência estética: não dá para colocar em palavras e em conceitos integralmente; o conceito somente aproxima, nos dá um vislumbre, da experiência, mas a experiência em si vai muito além do conceito e da Natureza. Contudo, não é porque um conceito não esgota uma experiência, ou Deus, ou o Fundamento da Realidade, que é impossível abordar tais questões.
O Mistério do catolicismo, na realidade, não é mistério no sentido que você disse. O mistério é no sentido daquilo que está oculto e que se manifesta em uma experiência religiosa e que não se esgota em conceitos, ainda que dê para falar nele. É a distinção entre teologia catafática e teologia apofática.
Sobre o seu conselho, eu já li parte do livro do Daniel Dennett, Consciousness Explained e o acho um excelente filósofo (tenho outros dois livros dele que lerei em breve (Além disso, estou fazendo mestrado acadêmico em Filosofia estudando o pensamento da materialista eliminativa e neurofilósofa Patricia Churchland - mais radical que Dennett). Eu conheço esse argumento dele e o que você quer dizer. Mas, novamente, isso esbarra no problema da consciência e da razão que levantei. Dennett, como todo bom mecanicista, dá uma elegante explicação no livro Consciousness Explained que a consciência não existe (ele é um materialista redutivo): nosso cérebro trabalha de maneira paralela, assim como um computador conexionista, com vários processos neurais trabalhando ao mesmo tempo; se um neurocientista olhar para o cérebro, ele só encontrará vários disparos neurais; esses disparos neurais recebem dados do ambiente, os processam e os transformam em comportamento ou flexões musculares etc; uma vez que são vários processos ao mesmo tempo, temos a impressão de que temos uma consciência, qualia e intencionalidade; ele chama esse processo de Esboços Múltiplos. E ele também explica que um dos elementos que foram preponderantes para gerar nossa consciência foi o conceito de Memes do Richard Dawkins. É, deveras, uma teoria fascinante, por mais que eu discorde de tudo.
Eu não tenho dúvida alguma que a evolução influenciou em nossa maneira de conhecer as coisas e na nossa cognição (só um imbecil negaria). O problema é que Dennett e a companhia mecanicista-fisicalista sustenta que não temos consciência e que os processos fundamentais da realidade são mecânicos. Isso simplesmente destrói a razão (ou Razão). Um argumento que acho devastador para o ateísmo em relação a isso é o de Richard Taylor, no livro Introdução à Metafísica (ele não era cristão e nem religioso; mas era teísta porque compreendeu que aqueles problemas que levantei são insolúveis). Suponha que você esteja a andar de trem, e então você vê lá fora escrito em umas pedras: "Bem-vindo a São Paulo". Você confiaria que chegou em São Paulo se aquelas pedras foram arranjadas de maneira aleatória, por um furação terremoto etc? Com certeza não. Imagine também que arqueólogos ao escavarem uma tumba encontrassem escrito o seguinte: "Essa tumba pertenceu a Xerxes". Se os escavadores concluírem que a tumba realmente pertenceu a Xerxes, mas, não obstante, essas marcas foram feitas de maneira acidental por forças da natureza (o que é uma possibilidade lógica e física), então se segue que eles chegaram a uma conclusão ilógica - já que não se pode concluir de maneira confiável que a tumba pertenceu a Xerxes se, de fato, ocorreu por acidente. O ponto é: se, metafisicamente, as forças fundamentais da natureza são ilógicas e mecânicas, não se pode concluir de maneira racional e confiável nos nossos estados mentais, uma vez que eles são metafisicamente moldados por forças cegas (Não, não tem nada a ver, conquanto seja parecido, com o argumento do Plantinga). Pois se você confia que sua mente consegue compreender a probabilidade e lhe dar confiança que talvez o ateísmo seja verdadeiro mas, ao mesmo tempo, você assume que o fundamento da realidade é fisicalidade em movimento regido por leis cegas, é o mesmo que você acreditar que chegou a SP porque viu pedras que foram dispostas de maneira acidental; ou é o mesmo que acreditar que (conforme muitas vezes acontece) que o céu realmente quer falar contigo porque você viu seu nome escrito nas nuvens ou um rosto formado por elas, quando, evidentemente, o processo de formação das nuvens é totalmente mecânico.
Oi Victor. Obrigado pelos comentários e interesse na minha opinião. Vou ser breve e pinçar algumas coisas:
- "Processos mecânicos" não seria o termo que eu usaria, pois o cérebro é muito, muito mais complicado que uma máquina. Sigo John Searle em rejeitar, também, a sinonimização do funcionamento do cérebro ao funcionamento dos computadores. Mas sim, eu penso que o cérebro, assim como qualquer outro órgão complexo, tem uma origem natural na evolução. É algo bem seguro de se afirmar hoje, sabemos o trajeto do aparecimento das diferentes partes do cérebro, sabemos até quando mais ou menos apareceram os primeiros neurônios no planeta (no aparecimento dos ancestrais comuns entre cnidários e ctenóforos). A origem do cérebro é bem clara. A consciência é mais complicada até de definir, mas me parece seguro dizer que ela depende de cérebro para existir.
Quando você iguala essa posição a "mecanicismo", eu repito que esse "ismo filosófico" está mais confundindo que esclarecendo, aqui. Se quer nomes para o que representaria minha posição metafísica, provavelmente o "realismo inocente" da Susan Haack é bom o suficiente para mim. Já traduzi um livro de filosofia da ciência dela.
- Você alega que não está objetando à evolução, daí usa um exemplo curioso da estátua de ouro surgir das rochas, o que me lembra bastante a Falácia de Hoyle. Não dá para entender minha posição sem entender melhor evolução. Talvez esteja faltando entendimento, aí. Quem entende evolução e um pouco do que já foi revelado da história natural do cérebro não acha um grande salto dizer que é possível emergir intencionalidade de coisas sem intencionalidade. Assim como é possível emergir penas, leite, néfrons, que são coisas bastante complicadas, assim como consciência.
- Interessante esse ponto de "naturalismo das lacunas". Ainda assim, a posição metafísica segundo a qual complexidade depende de simplicidade, que fenômenos mais simples criam fenômenos mas complexos, é bem segura. Se é assim que você vai chamar pejorativamente essa posição, não me importo. Eu me lembro que alguns tomistas e adeptos dos argumentos clássicos pela existência de Deus, ao perceber esse princípio, chegaram a alegar que Deus é algo simples. Essa alegação é simplesmente ridícula. Não há a menor possibilidade de um ser pessoal, consciente e interncional ser simples, pois empiricamente só temos acesso a exemplos de pessoalidade, consciência e intencionalidade em seres de extrema complexidade.
- Tampouco em disse que você alegou que o fundamento da realidade é o Deus cristão, eu disse em outro momento "mente sobrenatural superior à dos humanos" (mas eu concordo com sua objeção ao termo "sobrenatural", é bem parecida com o que eu disse sobre as coisas se naturalizarem assim que minimamente descritas). Parece claro, contudo, que você espera que o fundamento último da realidade seja um Deus pessoal, pois você mesmo o descreveu como tendo intencionalidade. Como dito acima, intencionalidade é algo complexo e podemos ver que depende de processos longos e contingentes no Universo para surgir.
- Sou lembrado da refutação de David Hume ao criacionismo em seu "Diálogos sobre a religião natural". Falando como o personagem Fílon, ele diz que conhecemos a criação empiricamente pela observação de criadores humanos. Mas também vemos coisas surgindo no mundo por outros processos, como a germinação das sementes e a reprodução dos animais. Portanto, presumir que o Universo foi criado seria tão bom quanto presumir que germinou ou se reproduziu. Estou trazendo isso aqui para ir adiante no argumento de Hume: hoje sabemos muito mais sobre os criadores a que temos acesso. Sabemos que evoluíram de primatas do leste africano. Sabemos que compartilham homologia cerebral com outros vertebrados. Conhecemos a neurogênese, o caso Phineas Gage. O postulado do Criador tornou-se ainda mais implausível do que demonstrado por Hume.
- Sobre a ciência estar chegando aos limites da cognição humana (ou seja, chegando aos próprios limites), não entendo sua objeção "não é ciência". Claro que não é, ninguém disse que é. Eu não vejo o termo "ciência" como honorífico. Para mim significa apenas "investigação empírica feita no contexto das teorias empíricas estabelecidas desde 1543 pela comunidade de investigadores empíricos". O meu ponto é que você leva a sério demais pressupostos puramente lógicos como "Ser Necessário", quando está longe de claro que a realidade obedecerá esses pressupostos no limite. A realidade não tem essa obrigação. Ela pode ficar ininteligível para nós nos limites, e derrubar os silogismos e pressupostos causais que temos. Agora, talvez isso valha para a consciência, o que tornaria meus argumentos probabilísticos mais frágeis. Mas eu não acho que estou presumindo coisa demais. É simplesmente muito provável que consciência tenha algo a ver com cérebro, que cérebros evoluíram, de modo que aplicar a noção de consciẽncia ao "Ser Necessário" é, como eu disse, muito menos parcimonioso que meu ateísmo.
- Sobre Dennett e Patricia Churchland, até onde me lembro não têm exatamente a mesma posição, me parece que Dennett rejeita o eliminativismo de Churchland, que eu acho escandaloso de implausível (tomara que você tenha sucesso em criticá-la no seu mestrado). Mas a parte que você citou não é o que mais gosto em Dennett. O "Perigosa Ideia" é o que mais conheço, e ele acertou em quase tudo ali. O seu exemplo sobre as pedras formando uma frase me parece uma reedição do argumento de Thomas Paley sobre o relógio, também adequadamente respondido pelos evolucionistas, daí eu reitero essa indicação de Dennett. Quanto à memética, é um fracasso como teoria, então o que se basear nela também vai fracassar. Ela fracassou especialmente porque não há como individuar o meme como podemos individuar o gene, e olha que a individuação do gene não é exatamente simples, também, não tão simples como esperavam os primeiros biólogos moleculares.
Em suma, eu estou ciente de que tenho pressupostos e compromissos metafísicos. Só não acho que eles são aqueles que você pensou inicialmente. Provavelmente, meus pressupostos (embora eu acho que não são exatamente pressupostos, mas OK) devem ser a opinião da maioria dos cientistas: realismo, reducionismo ontológico (no fundo, organismos são moléculas, moléculas são átomos, átomos são partículas, ainda que não possamos fazer teorias que deem conta de tudo o que é complexo só mencionando as partes mais simples que descobrimos), consciência como fenômeno emergente, improbabilidade de divindades.
Vou ser mais breve, até porque isso é complexo e cada um de nós tem uma interpretação diferente.
Quanto a questão da minha objeção do seu emergentismo, na realidade, não é uma questão de melhor entendimento da Evolução, e sim uma objeção ao pressuposto metafísica de que algo não intencional pode criar intencionalidade. Não tem nada a ver, também, com o argumento de Paley, uma vez que Paley assumiu o mecanicismo - vou aqui definir melhor: o conceito de que não há cor, sensação, ponto de vista subjetivo, propósito no que é mais axial na realidade - e também sustentou que os processos intencionais e complexos precisariam de várias intervenções para obter toda a complexidade. Eu rejeito isso, já que eu pressuponho uma filosofia da Natureza aristotélica: os princípios de tudo o que há são intrínsecos, não precisando de intervenções miraculosas. E não importa se vários cientistas e filósofos, como o Searle, sustentam que a consciência intencional pode surgir de processos não intencionais; isso é simplesmente uma falácia de autoridade, e eu poderia citar vários cientistas e filósofos que têm a mesma posição que a minha; não chegaríamos a lugar algum. Além disso - e você sabe muito bem - muitos cientistas hoje, e especificamente os neurocientistas na filosofia da mente -, são analfabetos filosoficamente, sustentando várias absurdidades.
Quanto a Patricia Churchland e Dennett, eu não quis dizer que dos dois concordam, e sim que a Churchlan é mais radical que o Dennett porque sustenta que não há sensações, consciência, pensamento, desejos, atitudes proposicionais, categorias da psicologia popular; ela sustenta que todos esses conceitos serão eliminados por um vocabulário e conceitos da neurociência, usando dentre uma das premissas a redução interteórica (e ela é, basicamente, uma quineana de saias). Dennett, ainda que seja também eliminativista, tem uma visão funcionalista, no sentido que valoriza as explicações funcionais da mente, de modo que ele coloca como importante explicar nosso comportamente como se fossem intrinsecamente intencionais, a fim de ajudar nas explicações científicas. Voltando à Churchland, eu acho que a visão dela é a mais plausível para qualquer naturalista; porque se tudo o que existe é fisicalidade em movimento, sendo o mais nevrálgico, não vejo o por que processos de alto nível não serem reduzidos a processos de baixo nível. De todo modo, ainda que eu não concorde com ela, para mim é interessante estudá-la para desafiar minhas convicções e também para aprender coisas interessantes e se aprofundar em outras (como neurociência, evolução, história da ciência).
E por fim, algo interessante que você sustenta, se é que eu entendi, é que você endossa o reducionismo ontológica, no entanto não a redução interteórica. Ou seja, ainda que seja possível reduzir a ontologia da Biologia para a Química, da Química para a Física, não será possível edificar uma redução teórica dessas teorias para a outra em que houve a redução ontológica; assim, não será possível haver leis de ponte entre Biologia e Química e nem derivar a Biologia da Química. Patricia Churchland acredita que seja, sim possível, a redução interteórica; e eu acho que ela está certa e dá vários exemplos da história da ciência. O que ela diz, e eu acho que é por aí que poderia ocorrer uma redução, por exemplo, da Química para a Física, é que na história da ciência houveram reduções amenas, intermediárias e totais. Um exemplo de uma intermediária é da termodinânimca para a mecânica estatística; uma total foi a teoria do flogisto para a moderna teoria química. No entanto, ela diz que talvez não seja possível alcançar reduções totais porque, talvez, não iremos dispor da matemática para isso. Eu acho que esse argumento não faz sentido, na medida em que é mais uma questão ontológica: se tudo o que existe é só fisicalidade composta, de modo que não há uma essência ontológica, não vejo impedimentos para, num futuro, haver uma física unificada e, com efeito, não haver mais química, biologia e por aí vai.
De todo modo, seria interessante você um dia escrever sobre essas questões, já que você tem um vasto conhecimento em ciência e filosofia da ciência. Estou agora estudando redução interteórica (que você deve saber), que levanta um problema epistemológica abissal: dado que as teorias científicas moldam nossa percepção da realidade, e uma vez que teorias antigas foram totalmente eliminadas pelas novas (física aristotélica pela newtoniana e, por sua vez, a einsteiniana eliminou a newtoniana), como justificar o conhecimento? Isso foi algo, mais ou menos, levantando por Kuhn; e outra coisa levantada por Quine, que tem a ver com o conhecimento também, foi em relação à indeterminação do físico, de modo que o nosso pensamento e tudo não é determinado, algo que Dennett concordava. Essas questões levaram os filósofos franceses como Derrida e Foulcault a sustentar que a consequência lógica disso seria que a realidade não tem uma objetividade e que nada é determinado; isso influenciou de algum modo o pensamento desses filósofos - que são a pedra angular da Teoria de Gênero. Mas é claro: não era essa a intenção de Quine e Kuhn.
E algo que você disse sobre simplicidade divina, realmente, é um conceito que é complexo de se entender. Essa tradição, do teísmo clássico, remonta a Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, Maimônides, Avicena, Averróis, Edward Feser, David Bentley Hart etc. Simplicidade divina nada mais é do que Deus não ter partes essenciais e físicas, não ter limites internos e externos, ser permanente, ser eterno, não ter potencialidade. Por exemplo, Deus não instancia a justiça e o amor; ele é o amor e a justiça. Deus não é um ente, como nós, que participa da existência; ele é a existência (e aqui é uma pergunta interessante: o que é afinal, a existência? É um cálculo de predicado com quantificadores universais, como os analíticos sustentam?). Uma vez que Deus não tem limites, ele é Ato Puro; e uma vez que ele é simples, ele é Uno. Ou seja: Deus é simples ontologicamente, mas não epistemologicamente: não é fácil entender Deus, mas, ontologicamente, ele é simples, como eu disse. Para essa tradição, Deus não é ontologicamente igual a eu e você, diferindo apenas em maximalidade ou porque instancia Onipotência (que não é diferente dele) Onisciência etc, como Alvin Plantinga, William Lane Craig e Richar Swinburne sustentam, e sim ele é o fundamento do Ser e onde não há diferença nele entre existência e essência. Algo que é interessante, é que estamos procurando a verdade; mas a verdade, se for refletir, é algo transcendental, que não se esgota na Natureza; e o conceito de existência é anterior à Natureza; e estar conforme a verdade é algo bom; assim como ser racional, assim como a Beleza, assim como a Justiça; tudo isso instancia o Bem, o que é bastante platônico. É um assunto, deveras, complexo; e caso lhe interesse, recomendo o livro The Experience of God: Being, Consciousness and Bliss, de David Bentley Hart, que é uma introdução ao teísmo clássico.
Excelente exposição, amigo. Um dos problemas mais básicos do ateísmo é achar que ele é um estado neutro e não tem uma metafísica. Ateus famosos como Sam Harris já andam falando em panpsiquismo, porque perceberam que a barreira da consciência é intransponível. Imagino que esteja familiarizado, caso.não conheça dê uma olhada em Federico Fagin, o pai do microchip, e Michael Levin, um biólogo cuja pesquisa basicamente provou que há sim, teleologia na biologia. A pesquisa dele é o prego final no caixão do neodarwinismo.
Excelente texto. Sou cristão. Não acho que alguém deva escolher ser cristão; acredito que as pessoas devem buscar pela verdade, e não crer por conveniência. Eu não escolhi crer, só creio.
Depois de quinze anos estudando o tema do Jesus histórico e lendo autores como Bart Ehrman, que você citou, obviamente deixei de ser fundamentalista e também de ser inerrantista bíblico. Mas continuo, sim, cristão.
O meu cristianismo, embora possa parecer “agradável” — entre aspas — por excluir inferno e outros elementos, não é fruto do meu desejo pessoal, mas do meu entendimento das Escrituras, das quais, como disse, não creio serem inerrantes. Já tentei deixar Sam Harris me convencer de que o cristianismo é imoral, mas o cristianismo contra o qual ele combate não é o que eu creio. https://rascunhosdenovembro.substack.com/p/16-o-cristianismo-e-imoral-respondendo
De qualquer forma, para mim, alguém que possua uma moral e uma ética enraizadas na lei natural é mais "cristão" do que alguém que apenas se confessa cristão, afinal, "tive fome, e destes-me de comer".
Parabéns pelo texto.
Um texto maravilhoso, parabéns.
Obrigado, Dan!
Se tu fosse atrás da verdade da Bíblia buscando na Bíblia acho que seria a melhor investigação jornalística. Agora tu falar que "perdeu" a fé com 13 anos é complicado. Eu comecei a entender o plano da salvação com 15 anos. Antes disso fui da igreja católica e aos 10 da presbiteriana e foi nessa que me convertí. Onde minhas dúvidas foram sendo respondidas aos poucos.
Compreendi seus argumentos, Eli, mas se puder ler o último livro do Jordan Peterson com o coração aberto, talvez também sinta o chamado.
Uma dúvida. Dado que você é ateu, sua metafísica é a naturalista ou materialista ou fisicalista; ou seja: o fundamento da realidade são coisas físicas regidas por leis mecânicas. Disso se levantam várias questões (na realidade, um cipoal de problemas elusivos). O primeiro - e mais complexo, que nunca vi um ateu responder (e eu leio filósofos ateus sofisticados) - é em relação à contingência: suponhamos que o Universo é eterno (se é eterno ou não, tanto faz); o Universo, sendo eterno, é contingente; tudo o que é contingente não possui sua própria causa, sua própria existência de sua própria natureza; algo que não possui, ontologicamente, a causa de sua própria existência, depende de outra coisa para existir; portanto, o Universo depende de algo mais nevrálgico para existir. Clarificando esta questão com uma analogia. Isto é o mesmo que as luzes solares fossem eternas: elas, ainda assim, precisariam do Sol para causá-las continuamente, para atualizá-las continuamente na existência, uma vez que elas não têm poderes causais para mantê-las na existência; em outras palavras, são ontologicamente pobres. Disso se segue que não adianta, por exemplo, apelar para uma regressão infinita: não se explica a existência, uma vez que nenhum evento é causa de sua existência, apenas que os eventos são eternos no passado. Uma resposta que vi a esse problema foi de John Leslie Mackie - grande filósofo analítico da Religião, que eu admiro -: o que é primordial é um pedaço de matéria, e, a partir disso, podemos então explicar a evolução, o Universo e a Vida; e esta explicação é a mais parcimoniosa, uma vez que não precisamos postular a existência de um Deus. Muito bom. Excelente. Fantástico. Contudo, se levanta um problema insoluvelmente elusivo: seja um pedaço de matéria, seja uma partícula fundamental, isto ainda é contingente. Com efeito, Mackie aceita um fato bruto; contudo, é algo sumamente ilógico; visto que se é aceito uma partícula fundamental (ou qualquer outra coisa física ou estado mental) como fato bruto, essa coisa carrega consigo uma necessidade metafísica, sendo, todavia, contingente. Assim, o ateísmo se fundamenta em uma Contingência Absoluta - o que é, deveras, contraditório.
O segundo problema é da consciência intencional. Dado que o fundamento da realidade para o ateísmo são estados físicos ou mentais (pode ser um naturalismo idealista) mecânicos, sem significado, discretos, ilógicos e soltos, o que ocorre é que essa metafísica não consegue explicar o fenômeno da consciência intencional - que é totalmente contrária à sua base subveniente -: teleológica, significativa, unitária, lógica e coerente. Pior: não consegue sustentar a Razão, na medida em que a Intencionalidade é uma característica da Razão. Não adianta apelar a dualismos de propriedades, a panpsiquismos naturalistas, a naturalismo biológico, a funcionalismo, enativismo etc. porque todos sustentam a metafísica naturalista sobredita. Por conseguinte, o ateísmo precisa sustentar uma tese da mente (claro, tácita) que é um dualismo de substâncias: há o res cogitans e o res extensas; no entanto, é um mistétio como a Matéria e a Mente interagem; e, como diz David Bentley Hart, a Razão abomina o dualismo (e eu digo que abomina também o ateísmo, ou naturalismo, ou materialismo ou fisicalismo).
Esses "ismos" filosóficos, que vieram para "zipar" ideias complicadas em termos mais digeríveis, com frequência servem para confundir, em vez de esclarecer.
Já tive essa intuição de Mackie — que, ainda que aceitemos os argumentos clássicos sobre Prima Causa, não há garantia nenhuma de que a entidade descrita seja um Deus pessoal com as propriedades mentais e intencionais que querem os religiosos.
Mas eu não preciso me comprometer com "materialismo", seja lá o que esse termo ainda significa depois da compreensão da matéria ter evoluído tanto desde quando foi cunhado. Nem com "fisicalismo", pois está claro que a física tem muito a descobrir. Já "naturalismo" parece mais plausível, no sentido de que "sobrenatural" é um termo tão vago que qualquer tentativa de descrever acaba por naturalizar.
Até onde sou capaz de entender os limites da física (e não é uma grande capacidade minha), o que eles parecem sugerir é que, se um dia teremos teorias amplas da natureza do próprio universo, para além de teorias mais limitadas sobre como funcionam organismos e espécies, fluidos e sólidos, compostos orgânicos e íons, partículas e ondas, essas teorias amplas precisarão reformar nosso entendimento do que é a própria causalidade.
O que eu chamo de "amplo" aqui é o que está muito fora da nossa experiência, tanto na escala grande quanto na pequena, e que faça avançar o projeto do reducionismo ontológico em que poucos princípios expliquem muita coisa da realidade. (Não acredito em reducionismo teórico no sentido dos positivistas lógicos, não acho que dá para reescrever a teoria da evolução falando só de ondas e partículas, não acho que o avanço do conhecimento consiste em áreas menos fundamentais se ajoelhando perante as mais fundamentais ao ponto de não precisarem de teorias próprias.)
Assim, o que parece é que começamos a bater à porta dos limites da cognição humana. Então, distinções como necessário/contingente, particular/universal, monismo/pluralismo, substância/atributo, abstrato/concreto começam a falhar, como as próprias teorias que tentam unir partículas à gravidade falham hoje.
Michael Oakeshott, em um ensaio de crítica a quem ele chamou de "racionalista moderno", disse isso: "Ele não dispõe da capacidade negativa (a qual Keats atribuiu a Shakespeare), o poder de aceitar os mistérios e as incertezas da experiência, livre da irritante busca por ordem e distinção."
Aceito os mistérios e as incertezas do universo que me cerca. Por isso mesmo, quando avalio a ideia de divindade, que apesar de revisionismos e ressignificações como a de Spinoza sempre significou algo como "mentes sobrenaturais mais poderosas que a mente humana", olho para as origens mais prováveis da mente humana, que são as evolutivas, e é a partir daí que concluo que deuses são improváveis. De forma análoga à qual eu concluiria que são improváveis aves com glândulas mamárias, ou morcegos com penas. É uma inferência indutiva até modesta, muito diferente de me comprometer com grandes teses sobre a origem do Universo.
O que isso significa para a base da realidade eu simplesmente não sei, até porque não acredito que a base da realidade contenha a consciência, pois é fenômeno emergente de coisas que só apareceram no Universo tardiamente, há menos de um bilhão de anos.
Essa ideia de origem natural da mente conforme seres simples se tornaram mais complexos não me compromete, também, com teorias específicas sobre a consciência. Eu não sei o que é a consciência, no fim das contas, só desconfio que depende do substrato dado aos cérebros — o que explica por que razão a consciência se altera em resposta a interferências físicas como beber álcool ou estar com sono.
A minha postura está muito mais em conformidade com a aceitação de mistérios do que o teísmo cristão, por exemplo, pois, apesar do uso da palavra "mistério" na liturgia católica, por exemplo, isso vem com muito mais conclusões e alegações epistêmicas, muito mais certezas do que permitiriam mistérios verdadeiros.
O que eu disse no meu texto é que reconheço que pessoas podem coletar um conjunto de "dados", para usar uma metáfora computacional, com qualidade semelhante aos que eu coletei, e concluir de forma diversa da minha, sendo essa conclusão perfeitamente racional. Eu não diria que poderiam concluir de forma diversa com os MESMOS dados, porque não acredito naquela tese atribuída a Quine da "subdeterminação teórica" (que, mesmo com todas as observações possíveis disponíveis, haveria mais de uma teoria para explicar o mesmo fenômeno).
Enquanto eu reconheço que o teísmo pode resultar da racionalidade, você alega que a "Razão" (com R maiúsculo, à moda de Robespierre) é incompatível com o ateísmo.
O que eu suspeito é que você, em suas leituras, superestima a importância de silogismos clássicos dos filósofos que buscaram provar que Deus existe. O que é uma empreitada e tanto, dado que, em última análise, Deus é parte da realidade e a maior parte das verdades sobre a realidade (pressupondo que você não é idealista ou que adote alguma outra forma de antirrealismo forte) não são possíveis de se obter a priori. Se fosse, as ciências empíricas não teriam sido necessárias, não teriam contribuído com nada de valor.
Se me permite um conselho, eu ouviria um bom filósofo a respeito de como padrões observados pelas ciências empíricas podem afetar o resto do pensamento. "A Perigosa Ideia de Darwin", de Daniel Dennett, por exemplo, mostra como a seleção natural afetou muito mais que nosso entendimento da origem das espécies, se dermos a ele a chance filosófica que ela merece.
Eu me engajo em debate com teístas há 21 anos. Já ouvi tudo sobre silogismos tomistas, necessidade e contingência, recursão causal, pedras inamovíveis. No fim das contas, assim como Dawkins pergunta "mas é verdade?" para Ayaan Hirsi Ali, eu pergunto "e onde isso aí mostra uma entidade preocupada com a vida humana, que guiou a seleção natural para o aparecimento da nossa espécie, que deu seu único filho para pagar pelos pecados alheios etc. etc."? A crença religiosa é invariavelmente mais ousada e menos parcimoniosa que minha crença probabilística no ateísmo.
O problema é que para você estabelecer o seu ateísmo, você precisa compreender conceitos; e então a probabilidade estabelecer o ateísmo como o mais provável. E é essa a segunda objeção que eu fiz - e que você assume -: que nossa consciência foi gerada por processos mecânicos. Entenda aqui que estou objetando não a Evolução, mas a metafísica subjacente: o mecanicismo. O problema, novamente, é que dado a assunção sua de que o que é mais primordial - seja probabilisticamente ou não - é a fisicalidade, dado a ateísmo ou naturalismo, no mundo da física não há propósito e lógica - que é fulcral para a mente. Ou seja: a base subveniente tem características que a base superveniente não tem. E não adianta apelar para o tempo evolutivo - isto é falácia pleonástica -: mesmo que durasse trilhões de anos, ainda assim seria logicamente impossível emergir consciência fenomenal e intencional. E sim você se compromete com uma tese da mente: o emergentismo forte, conforme você sustentou em relação à evolução gerar a consciência. Na realidade, está mais para uma tese metafísica. Esse emergentismo é o mesmo que você ver uma estátua de ouro e dizer que a estátua de ouro emergiu de concreto em um processo evolutivo que durou bilhões de anos. Não faz sentido. Um átomo mais um átomo não gera consciência; bilhões de átomos reunidos também não gerarão. Como disse, é uma falácia pleonástica.
Sobre o fundamento da realidade ser Deus, eu, na realidade, não argumentei que o fundamento da realidade é o Deus cristão; o que eu argumentei foi que se aceitar o ateísmo, o preço intelectual é muito alto - conforme eu argumentei. Além disso, a questão é se o fundamento da realidade é um Ser Necessário - não importa se é o deus cristão, islâmico, vedanta etc - ou se são coisas contingentes regidas por leis cegas. E isso é uma questão metafísica - e não probabilística. Mas, novamente, mesmo que se tente estabelecer que probabilisticamente o ateísmo é mais plausível, você pressupõe várias coisas: que há um mundo exterior à sua mente; que sua mente consegue compreender a probilidade, as leis naturais, a semântica das palavras; que sua mente tem algum nível de confiança; que sua mente é capaz de raciocinar a partir de premissas levando a conclusões. E, desse modo, são estes pressupostos que precisam ser discutidos; e o segundo problema que levantei consiste nesses pressupostos. O que você faz (como vários naturalistas, inclusive o Dennett, que eu já li) é simplesmente assumir uma metafísica e, a partir dessa metafísica, interpretar a ciência e o conhecimento. Claro, você pode estar certo; mas é necessário refletir se a metafísica subjacente está correta.
Sobre o que você disse concernente aos limites da cognição humana é problemático em dois sentidos: não é científico, porque não há evidências suficientes e, sobretudo, na realidade, é um pressuposto filosófico. Veja, se você estiver certo (quem sabe?), é necessário estabelecer por que há esses limites; e isso consiste em apontar uma ontologia cognitiva, ou seja, que nada mais é, por exemplo, dizer que nosso aparato cognitivo tem esta e essa limitação em razão, por exemplo, de nossas estruturas biológicas, físicas, químicas e que, com efeito, tais estruturas moldam nossa percepção e limitam o nosso conhecimento; a partir desse pressuposto ontológico, você então estabelece os limites do conhecimento. O problema é que é só uma alegação, e nada mais.
E eu vejo que você endossa o naturalismo das lacunas: talvez um dia teremos teorias amplas que mudarão nosso entendimento da causalidade etc. Veja, pode ser que você esteja certo; mas o problema desse argumento é que ele é o inverso do deus das lacunas.
Outra coisa é que eu não assumo que a mente é sobrenatural; não faz sentido; a mente é natural. Além disso, não endosso a distinção entre natural e sobrenatural: para mim só há uma realidade. A distinção de sobrenatural e natural é algo muito moderno: os antigos gregos e medievais não faziam essa distinção - que é algo da Filosofia Moderna, sobretudo em razão, entre outras, do dualismo cartesiano.
E aceitar os mistérios é algo que eu também aceito. O que eu afirmo não tem nada a ver com infabilismo e ilimitação epistêmica; é somente uma reflexão das consequências lógicas do ateísmo. E não, não um argumento priori: é simplesmente a posteriori, dado o conhecimento que temos da estrutura do Universo, da natureza do comportamento dos seres humanos, do poder da Razão etc. Sobre o ensaio do Oakeshott, na realidade isso não se aplica a mim porque eu não sou racionalista. Muito pelo contrário. Para mim nós podemos discutir essas grandes questões; no entanto, o significado delas não se esgotam no conceito - vão muito além. Pense, por exemplo, no conceito de estética. Há livros que falam sobre a experiência estética na filosofia da Arte. Isso é possível porque há, de fato, uma objetividade que, com efeito, possibilita criar conceitos universais. Não obstante, esses conceitos universais e objetivos não esgotam a experiência estética: não dá para colocar em palavras e em conceitos integralmente; o conceito somente aproxima, nos dá um vislumbre, da experiência, mas a experiência em si vai muito além do conceito e da Natureza. Contudo, não é porque um conceito não esgota uma experiência, ou Deus, ou o Fundamento da Realidade, que é impossível abordar tais questões.
O Mistério do catolicismo, na realidade, não é mistério no sentido que você disse. O mistério é no sentido daquilo que está oculto e que se manifesta em uma experiência religiosa e que não se esgota em conceitos, ainda que dê para falar nele. É a distinção entre teologia catafática e teologia apofática.
Sobre o seu conselho, eu já li parte do livro do Daniel Dennett, Consciousness Explained e o acho um excelente filósofo (tenho outros dois livros dele que lerei em breve (Além disso, estou fazendo mestrado acadêmico em Filosofia estudando o pensamento da materialista eliminativa e neurofilósofa Patricia Churchland - mais radical que Dennett). Eu conheço esse argumento dele e o que você quer dizer. Mas, novamente, isso esbarra no problema da consciência e da razão que levantei. Dennett, como todo bom mecanicista, dá uma elegante explicação no livro Consciousness Explained que a consciência não existe (ele é um materialista redutivo): nosso cérebro trabalha de maneira paralela, assim como um computador conexionista, com vários processos neurais trabalhando ao mesmo tempo; se um neurocientista olhar para o cérebro, ele só encontrará vários disparos neurais; esses disparos neurais recebem dados do ambiente, os processam e os transformam em comportamento ou flexões musculares etc; uma vez que são vários processos ao mesmo tempo, temos a impressão de que temos uma consciência, qualia e intencionalidade; ele chama esse processo de Esboços Múltiplos. E ele também explica que um dos elementos que foram preponderantes para gerar nossa consciência foi o conceito de Memes do Richard Dawkins. É, deveras, uma teoria fascinante, por mais que eu discorde de tudo.
Eu não tenho dúvida alguma que a evolução influenciou em nossa maneira de conhecer as coisas e na nossa cognição (só um imbecil negaria). O problema é que Dennett e a companhia mecanicista-fisicalista sustenta que não temos consciência e que os processos fundamentais da realidade são mecânicos. Isso simplesmente destrói a razão (ou Razão). Um argumento que acho devastador para o ateísmo em relação a isso é o de Richard Taylor, no livro Introdução à Metafísica (ele não era cristão e nem religioso; mas era teísta porque compreendeu que aqueles problemas que levantei são insolúveis). Suponha que você esteja a andar de trem, e então você vê lá fora escrito em umas pedras: "Bem-vindo a São Paulo". Você confiaria que chegou em São Paulo se aquelas pedras foram arranjadas de maneira aleatória, por um furação terremoto etc? Com certeza não. Imagine também que arqueólogos ao escavarem uma tumba encontrassem escrito o seguinte: "Essa tumba pertenceu a Xerxes". Se os escavadores concluírem que a tumba realmente pertenceu a Xerxes, mas, não obstante, essas marcas foram feitas de maneira acidental por forças da natureza (o que é uma possibilidade lógica e física), então se segue que eles chegaram a uma conclusão ilógica - já que não se pode concluir de maneira confiável que a tumba pertenceu a Xerxes se, de fato, ocorreu por acidente. O ponto é: se, metafisicamente, as forças fundamentais da natureza são ilógicas e mecânicas, não se pode concluir de maneira racional e confiável nos nossos estados mentais, uma vez que eles são metafisicamente moldados por forças cegas (Não, não tem nada a ver, conquanto seja parecido, com o argumento do Plantinga). Pois se você confia que sua mente consegue compreender a probabilidade e lhe dar confiança que talvez o ateísmo seja verdadeiro mas, ao mesmo tempo, você assume que o fundamento da realidade é fisicalidade em movimento regido por leis cegas, é o mesmo que você acreditar que chegou a SP porque viu pedras que foram dispostas de maneira acidental; ou é o mesmo que acreditar que (conforme muitas vezes acontece) que o céu realmente quer falar contigo porque você viu seu nome escrito nas nuvens ou um rosto formado por elas, quando, evidentemente, o processo de formação das nuvens é totalmente mecânico.
Oi Victor. Obrigado pelos comentários e interesse na minha opinião. Vou ser breve e pinçar algumas coisas:
- "Processos mecânicos" não seria o termo que eu usaria, pois o cérebro é muito, muito mais complicado que uma máquina. Sigo John Searle em rejeitar, também, a sinonimização do funcionamento do cérebro ao funcionamento dos computadores. Mas sim, eu penso que o cérebro, assim como qualquer outro órgão complexo, tem uma origem natural na evolução. É algo bem seguro de se afirmar hoje, sabemos o trajeto do aparecimento das diferentes partes do cérebro, sabemos até quando mais ou menos apareceram os primeiros neurônios no planeta (no aparecimento dos ancestrais comuns entre cnidários e ctenóforos). A origem do cérebro é bem clara. A consciência é mais complicada até de definir, mas me parece seguro dizer que ela depende de cérebro para existir.
Quando você iguala essa posição a "mecanicismo", eu repito que esse "ismo filosófico" está mais confundindo que esclarecendo, aqui. Se quer nomes para o que representaria minha posição metafísica, provavelmente o "realismo inocente" da Susan Haack é bom o suficiente para mim. Já traduzi um livro de filosofia da ciência dela.
- Você alega que não está objetando à evolução, daí usa um exemplo curioso da estátua de ouro surgir das rochas, o que me lembra bastante a Falácia de Hoyle. Não dá para entender minha posição sem entender melhor evolução. Talvez esteja faltando entendimento, aí. Quem entende evolução e um pouco do que já foi revelado da história natural do cérebro não acha um grande salto dizer que é possível emergir intencionalidade de coisas sem intencionalidade. Assim como é possível emergir penas, leite, néfrons, que são coisas bastante complicadas, assim como consciência.
- Interessante esse ponto de "naturalismo das lacunas". Ainda assim, a posição metafísica segundo a qual complexidade depende de simplicidade, que fenômenos mais simples criam fenômenos mas complexos, é bem segura. Se é assim que você vai chamar pejorativamente essa posição, não me importo. Eu me lembro que alguns tomistas e adeptos dos argumentos clássicos pela existência de Deus, ao perceber esse princípio, chegaram a alegar que Deus é algo simples. Essa alegação é simplesmente ridícula. Não há a menor possibilidade de um ser pessoal, consciente e interncional ser simples, pois empiricamente só temos acesso a exemplos de pessoalidade, consciência e intencionalidade em seres de extrema complexidade.
- Tampouco em disse que você alegou que o fundamento da realidade é o Deus cristão, eu disse em outro momento "mente sobrenatural superior à dos humanos" (mas eu concordo com sua objeção ao termo "sobrenatural", é bem parecida com o que eu disse sobre as coisas se naturalizarem assim que minimamente descritas). Parece claro, contudo, que você espera que o fundamento último da realidade seja um Deus pessoal, pois você mesmo o descreveu como tendo intencionalidade. Como dito acima, intencionalidade é algo complexo e podemos ver que depende de processos longos e contingentes no Universo para surgir.
- Sou lembrado da refutação de David Hume ao criacionismo em seu "Diálogos sobre a religião natural". Falando como o personagem Fílon, ele diz que conhecemos a criação empiricamente pela observação de criadores humanos. Mas também vemos coisas surgindo no mundo por outros processos, como a germinação das sementes e a reprodução dos animais. Portanto, presumir que o Universo foi criado seria tão bom quanto presumir que germinou ou se reproduziu. Estou trazendo isso aqui para ir adiante no argumento de Hume: hoje sabemos muito mais sobre os criadores a que temos acesso. Sabemos que evoluíram de primatas do leste africano. Sabemos que compartilham homologia cerebral com outros vertebrados. Conhecemos a neurogênese, o caso Phineas Gage. O postulado do Criador tornou-se ainda mais implausível do que demonstrado por Hume.
- Sobre a ciência estar chegando aos limites da cognição humana (ou seja, chegando aos próprios limites), não entendo sua objeção "não é ciência". Claro que não é, ninguém disse que é. Eu não vejo o termo "ciência" como honorífico. Para mim significa apenas "investigação empírica feita no contexto das teorias empíricas estabelecidas desde 1543 pela comunidade de investigadores empíricos". O meu ponto é que você leva a sério demais pressupostos puramente lógicos como "Ser Necessário", quando está longe de claro que a realidade obedecerá esses pressupostos no limite. A realidade não tem essa obrigação. Ela pode ficar ininteligível para nós nos limites, e derrubar os silogismos e pressupostos causais que temos. Agora, talvez isso valha para a consciência, o que tornaria meus argumentos probabilísticos mais frágeis. Mas eu não acho que estou presumindo coisa demais. É simplesmente muito provável que consciência tenha algo a ver com cérebro, que cérebros evoluíram, de modo que aplicar a noção de consciẽncia ao "Ser Necessário" é, como eu disse, muito menos parcimonioso que meu ateísmo.
- Sobre Dennett e Patricia Churchland, até onde me lembro não têm exatamente a mesma posição, me parece que Dennett rejeita o eliminativismo de Churchland, que eu acho escandaloso de implausível (tomara que você tenha sucesso em criticá-la no seu mestrado). Mas a parte que você citou não é o que mais gosto em Dennett. O "Perigosa Ideia" é o que mais conheço, e ele acertou em quase tudo ali. O seu exemplo sobre as pedras formando uma frase me parece uma reedição do argumento de Thomas Paley sobre o relógio, também adequadamente respondido pelos evolucionistas, daí eu reitero essa indicação de Dennett. Quanto à memética, é um fracasso como teoria, então o que se basear nela também vai fracassar. Ela fracassou especialmente porque não há como individuar o meme como podemos individuar o gene, e olha que a individuação do gene não é exatamente simples, também, não tão simples como esperavam os primeiros biólogos moleculares.
Em suma, eu estou ciente de que tenho pressupostos e compromissos metafísicos. Só não acho que eles são aqueles que você pensou inicialmente. Provavelmente, meus pressupostos (embora eu acho que não são exatamente pressupostos, mas OK) devem ser a opinião da maioria dos cientistas: realismo, reducionismo ontológico (no fundo, organismos são moléculas, moléculas são átomos, átomos são partículas, ainda que não possamos fazer teorias que deem conta de tudo o que é complexo só mencionando as partes mais simples que descobrimos), consciência como fenômeno emergente, improbabilidade de divindades.
Oi, Eli. Obrigado por responder.
Vou ser mais breve, até porque isso é complexo e cada um de nós tem uma interpretação diferente.
Quanto a questão da minha objeção do seu emergentismo, na realidade, não é uma questão de melhor entendimento da Evolução, e sim uma objeção ao pressuposto metafísica de que algo não intencional pode criar intencionalidade. Não tem nada a ver, também, com o argumento de Paley, uma vez que Paley assumiu o mecanicismo - vou aqui definir melhor: o conceito de que não há cor, sensação, ponto de vista subjetivo, propósito no que é mais axial na realidade - e também sustentou que os processos intencionais e complexos precisariam de várias intervenções para obter toda a complexidade. Eu rejeito isso, já que eu pressuponho uma filosofia da Natureza aristotélica: os princípios de tudo o que há são intrínsecos, não precisando de intervenções miraculosas. E não importa se vários cientistas e filósofos, como o Searle, sustentam que a consciência intencional pode surgir de processos não intencionais; isso é simplesmente uma falácia de autoridade, e eu poderia citar vários cientistas e filósofos que têm a mesma posição que a minha; não chegaríamos a lugar algum. Além disso - e você sabe muito bem - muitos cientistas hoje, e especificamente os neurocientistas na filosofia da mente -, são analfabetos filosoficamente, sustentando várias absurdidades.
Quanto a Patricia Churchland e Dennett, eu não quis dizer que dos dois concordam, e sim que a Churchlan é mais radical que o Dennett porque sustenta que não há sensações, consciência, pensamento, desejos, atitudes proposicionais, categorias da psicologia popular; ela sustenta que todos esses conceitos serão eliminados por um vocabulário e conceitos da neurociência, usando dentre uma das premissas a redução interteórica (e ela é, basicamente, uma quineana de saias). Dennett, ainda que seja também eliminativista, tem uma visão funcionalista, no sentido que valoriza as explicações funcionais da mente, de modo que ele coloca como importante explicar nosso comportamente como se fossem intrinsecamente intencionais, a fim de ajudar nas explicações científicas. Voltando à Churchland, eu acho que a visão dela é a mais plausível para qualquer naturalista; porque se tudo o que existe é fisicalidade em movimento, sendo o mais nevrálgico, não vejo o por que processos de alto nível não serem reduzidos a processos de baixo nível. De todo modo, ainda que eu não concorde com ela, para mim é interessante estudá-la para desafiar minhas convicções e também para aprender coisas interessantes e se aprofundar em outras (como neurociência, evolução, história da ciência).
E por fim, algo interessante que você sustenta, se é que eu entendi, é que você endossa o reducionismo ontológica, no entanto não a redução interteórica. Ou seja, ainda que seja possível reduzir a ontologia da Biologia para a Química, da Química para a Física, não será possível edificar uma redução teórica dessas teorias para a outra em que houve a redução ontológica; assim, não será possível haver leis de ponte entre Biologia e Química e nem derivar a Biologia da Química. Patricia Churchland acredita que seja, sim possível, a redução interteórica; e eu acho que ela está certa e dá vários exemplos da história da ciência. O que ela diz, e eu acho que é por aí que poderia ocorrer uma redução, por exemplo, da Química para a Física, é que na história da ciência houveram reduções amenas, intermediárias e totais. Um exemplo de uma intermediária é da termodinânimca para a mecânica estatística; uma total foi a teoria do flogisto para a moderna teoria química. No entanto, ela diz que talvez não seja possível alcançar reduções totais porque, talvez, não iremos dispor da matemática para isso. Eu acho que esse argumento não faz sentido, na medida em que é mais uma questão ontológica: se tudo o que existe é só fisicalidade composta, de modo que não há uma essência ontológica, não vejo impedimentos para, num futuro, haver uma física unificada e, com efeito, não haver mais química, biologia e por aí vai.
De todo modo, seria interessante você um dia escrever sobre essas questões, já que você tem um vasto conhecimento em ciência e filosofia da ciência. Estou agora estudando redução interteórica (que você deve saber), que levanta um problema epistemológica abissal: dado que as teorias científicas moldam nossa percepção da realidade, e uma vez que teorias antigas foram totalmente eliminadas pelas novas (física aristotélica pela newtoniana e, por sua vez, a einsteiniana eliminou a newtoniana), como justificar o conhecimento? Isso foi algo, mais ou menos, levantando por Kuhn; e outra coisa levantada por Quine, que tem a ver com o conhecimento também, foi em relação à indeterminação do físico, de modo que o nosso pensamento e tudo não é determinado, algo que Dennett concordava. Essas questões levaram os filósofos franceses como Derrida e Foulcault a sustentar que a consequência lógica disso seria que a realidade não tem uma objetividade e que nada é determinado; isso influenciou de algum modo o pensamento desses filósofos - que são a pedra angular da Teoria de Gênero. Mas é claro: não era essa a intenção de Quine e Kuhn.
Enfim, foi um prazer essa troca de ideias.
E algo que você disse sobre simplicidade divina, realmente, é um conceito que é complexo de se entender. Essa tradição, do teísmo clássico, remonta a Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, Maimônides, Avicena, Averróis, Edward Feser, David Bentley Hart etc. Simplicidade divina nada mais é do que Deus não ter partes essenciais e físicas, não ter limites internos e externos, ser permanente, ser eterno, não ter potencialidade. Por exemplo, Deus não instancia a justiça e o amor; ele é o amor e a justiça. Deus não é um ente, como nós, que participa da existência; ele é a existência (e aqui é uma pergunta interessante: o que é afinal, a existência? É um cálculo de predicado com quantificadores universais, como os analíticos sustentam?). Uma vez que Deus não tem limites, ele é Ato Puro; e uma vez que ele é simples, ele é Uno. Ou seja: Deus é simples ontologicamente, mas não epistemologicamente: não é fácil entender Deus, mas, ontologicamente, ele é simples, como eu disse. Para essa tradição, Deus não é ontologicamente igual a eu e você, diferindo apenas em maximalidade ou porque instancia Onipotência (que não é diferente dele) Onisciência etc, como Alvin Plantinga, William Lane Craig e Richar Swinburne sustentam, e sim ele é o fundamento do Ser e onde não há diferença nele entre existência e essência. Algo que é interessante, é que estamos procurando a verdade; mas a verdade, se for refletir, é algo transcendental, que não se esgota na Natureza; e o conceito de existência é anterior à Natureza; e estar conforme a verdade é algo bom; assim como ser racional, assim como a Beleza, assim como a Justiça; tudo isso instancia o Bem, o que é bastante platônico. É um assunto, deveras, complexo; e caso lhe interesse, recomendo o livro The Experience of God: Being, Consciousness and Bliss, de David Bentley Hart, que é uma introdução ao teísmo clássico.
Excelente exposição, amigo. Um dos problemas mais básicos do ateísmo é achar que ele é um estado neutro e não tem uma metafísica. Ateus famosos como Sam Harris já andam falando em panpsiquismo, porque perceberam que a barreira da consciência é intransponível. Imagino que esteja familiarizado, caso.não conheça dê uma olhada em Federico Fagin, o pai do microchip, e Michael Levin, um biólogo cuja pesquisa basicamente provou que há sim, teleologia na biologia. A pesquisa dele é o prego final no caixão do neodarwinismo.