O que aprendi em 23 anos como "ateu de Jesus"
Reflexões autobiográficas e comentários sobre o fracasso do neoateísmo e a continuidade da desconfiança contra os ateus
Gostaria que fosse verdade que o Universo é controlado por um ser perfeitamente bom e superlativamente poderoso. Seria bom.
Também gostaria de acreditar que uma Inteligência maior que o próprio Cosmos tem um plano para a minha vida, registrando na Caderneta Sideral as boas coisas que fiz sem que ninguém visse e as coisas ruins que me arrependo de ter feito.
Seria curioso imaginar, também, esse Ente decidindo quais constantes deve ter o Universo, para criar as zonas habitáveis nas galáxias, ajustando os botões giratórios da realidade como Cachinhos Dourados escolhendo a temperatura de sua sopa.
Também gostaria que fossem a verdade última algumas versões de cristianismo. Não todas. Certamente não aquela que me sugere, por exemplo, que se você tem quatro filhos, três dos quais são pestinhas e um dos quais é um bom menino, que seria correto punir o último pelas travessuras dos outros três, se o bom menino aceitasse de bom grado a punição pelo que ele não fez. Não faz sentido.
Também excluo das minhas aspirações aquelas versões que acham correto queimar malfeitores pela eternidade pelo que fizeram em períodos infinitamente mais curtos que a eternidade. Ainda que você acredite em punição física para malfeitores, justificar punição eterna tende ao infinitamente difícil, dificuldade que é paralela ao tempo infinito.
Mas aquelas versões que romperam com milênios de códigos morais vingativos, com o olho por olho, dizendo para atirar a primeira pedra quem nunca fez nada de errado? Aquelas versões que subverteram a bajulação à força bruta e ao alto status social, sugerindo que a vítima de tortura na verdade é a parte respeitável? Aquelas versões que fundaram a distinção entre público e privado, sugerindo dar a César o que é de César (ainda que o detestemos)? Seriam bem-vindas.
Eu gostaria, mas querer não é poder e vontades não são necessariamente realidades. No meio do meu caminho tinha uma pedra. Mais de uma. A perda da fé do menino católico que disse aos 11 anos que queria ser padre — eu — foi gradual e sem muitos dramas.
Como perdi a fé
Curioso a respeito do mundo natural, eu lia revistas populares como Superinteressante (editora Abril). Em janeiro de 2001, quando eu tinha 13 anos, a revista publicou uma capa sobre câncer com uma chamada no canto para outra reportagem: “Deus existe? Por que cientistas passam a crer na divindade quando chegam às fronteiras da ciência”.

Eu li a matéria, não muito tempo depois da publicação. O exemplar pertencia à biblioteca da escola. Lembro-me de pausar a leitura e olhar em direção à quadra esportiva. Lembro-me de fazer força mental para terminar a leitura, pois não estava muito boa, ou eu estava com preguiça.
A história que eu conto para amigos e para mim mesmo é que, ao perceber o quão pobres eram os argumentos a favor da existência de Deus nesta reportagem, foi plantada na minha cabeça a semente da dúvida.
Reli a reportagem, pela primeira vez em um quarto de século. O texto é de José Augusto Lemos, a quem nunca culpei pelos argumentos ruins. Vejo no LinkedIn que Lemos tem impressionantes 47 anos de experiência no jornalismo, agora.
Ele começou com um tom pessoal: “Existe uma luz no fim do túnel? Eu sinceramente espero que sim”. Candidamente, Lemos confessa ter ficado apreensivo de escrever uma reportagem sobre Deus para uma revista científica.
Antes do ataque do 11 de setembro e cinco anos antes do “Deus, Um Delírio” de Richard Dawkins (que iniciou o assim chamado movimento do “neoateísmo”), Lemos diz que o físico Stephen Hawking era o responsável por trazer nos anos anteriores o tema divino de volta ao debate científico, com sugestões einsteinianas de conexão entre física e religião com uma expressão no final de seu próprio bestseller “Uma breve história do tempo” (1988): “conheceríamos a mente de Deus”. Nos anos seguintes à reportagem, Hawking deixou mais claro que era ateu. Honesto, Lemos avisou no texto que o físico não era “um sujeito religioso” e estava usando Deus como “metáfora” — como era hábito de Einstein.
Enquanto eu relia a reportagem, estava com dificuldade para entender o que me despertou desconfiança nela, além do fato de que a visão pró-teísmo era claramente favorecida. Quando a esmola é demais, o santo desconfia.
Até que topei com um nome: Fred Hoyle (1915-2001, ele morreu sete meses depois da reportagem). Ele era um físico que tinha uma grande dificuldade de entender a teoria da evolução pela seleção natural. Por isso Dawkins, com razão, apelidou seu argumento ruim, de que “uma explosão num depósito de ferro velho não faz com que pedaços de metal se juntem numa máquina útil e funcional” — citado na Super — de “falácia de Hoyle”.
Então, aí estão dois elementos difíceis de ignorar a matéria: o desequilíbrio para um lado, que eu percebi, e uma analogia péssima para a seleção natural, que eu também devo ter percebido (na época, já conhecia Darwin, embora a primeira edição que eu comprei do “Origem das Espécies” tenha sido lançada em 2004 — a tradução muito criticada da editora Martin Claret, que misturou edições da obra).
Eu ainda me crismei como católico no ano seguinte, aos 15 anos. Ao ser confirmado, um católico precisa dizer em público que acredita na doutrina da igreja. Eu não acho que fui insincero, minhas dúvidas ainda estavam em gestação.
Foi justamente meu presente de crisma — uma Bíblia — que me levou a bater o último prego no caixão da fé. Li o livro de Juízes, que contém a história de Sansão. E concluí que não havia como aquilo ter sido inspirado por Deus.
Não tenho data exata para minha desconversão e conclusão a favor do ateísmo, mas lembro que tentei comunicá-la para meus pais, que reagiram de um jeito meio exasperado, mas ainda amoroso. Fui levado para o quarto deles e leram trechos da Bíblia.
Decidi, por amor e obediência, ser insincero e aleguei para eles que o Salmo 14 “o tolo diz em seu coração: ‘não há Deus’” era convincente. Obviamente, não era. A Bíblia me xingando de tolo enquanto se contradiz sobre a ordem da criação da luz e das plantas nada podia fazer para restaurar a minha fé. E a pobreza desse argumento, junto com meu desengajamento de debater com meus pais a respeito, foi provavelmente um momento de fim da infância e início da maturidade para mim.
Pouco tempo depois, minha insinceridade foi descoberta, porque aos 16 anos minha irmã me flagrou em uma rede social defendendo o ateísmo e me engajando em debates com religiosos. Talvez eu quisesse ser descoberto. Assegurei aos meus pais que os valores que aprendi em casa não mudaram, que eu era exatamente o mesmo. Os valores não tinham crença em Deus como premissa, afinal. Eu saí do armário duas vezes, portanto — mas, o que pode surpreender a alguns, nunca vi conexão entre uma coisa e outra, fé e sexualidade. Eram assuntos diferentes, armários diferentes.
Eu queria debate, até acalorado, mas não queria briga. Por isso, em 2009, cofundei e dei nome à LiHS — Liga Humanista Secular do Brasil. O humanismo secular, em resumo, é para pessoas sem religião proporem uma forma positiva de viver suas vidas sem fé, acrescentando em vez de tirar, construindo em vez de destruir. A associação acabou morrendo por volta de 2019 por desdobramentos internos da ascensão do identitarismo, como conto no meu livro “Mais iguais que os outros”.
Neoambivalência
Quando veio o “neoateísmo”, eu, que me tornei ateu espontaneamente no interior de Minas Gerais, sem que ninguém me sugerisse a conclusão e com leitura mínima de filosofia, reagi de forma ambivalente. Eu me diverti lendo o bestseller de Dawkins em 2007, um ano depois de publicado, quando estava na graduação. Mas, ao mesmo tempo, eu me preocupei com o impacto social do livro. Não o considerei o melhor exemplo de argumentação ateia, considerei-o entretenimento para ateus, não uma obra persuasiva para quem estivesse em dúvida.
Respeito Dawkins — conversei brevemente com ele em 2014 — e considero muitas das críticas a ele um mal disfarçado desconforto com o ateísmo em geral. Onde ele erra, na minha opinião, é ao não dedicar muito tempo ao estudo mais aprofundado da religião. Dawkins não teria interesse, por exemplo, nos extensos ensaios do acadêmico da religião Andrew Henry no YouTube sobre as várias religiões do mundo. Ele cita brevemente os estudos do cientista cognitivo Pascal Boyer, mas sem muito desenvolvimento nas partes mais intrigantes da obra dele: o pensamento mitológico seria ligado a “moldes” cognitivos que temos para categorias de coisas que encontramos no mundo, com elementos surpreendentes. Como o mito africano de que baobás são capazes de se lembrarem de conversas tidas à sua sombra — uma coisa falsa, mas belíssima.
Não gosto de ser muito duro com Dawkins. Minhas críticas, essencialmente, podem ser resumidas assim: ele tem o defeito do baixo interesse em filosofia. É, aliás, o mesmo defeito de outros cientistas e divulgadores, como o próprio Stephen Hawking e Neil DeGrasse Tyson. Um problema com isso é que o ateísmo é uma crença (não poderia ser outra coisa) de natureza filosófica. Em suma, uma resposta especulativa, ainda que firme para alguns de seus aderentes, para um problema filosófico por excelência.
Na minha opinião, ateus deveriam ver a si mesmos como os aderentes ao Candomblé se veem: uma minoria de crença. O fato de nós ateus acharmos que o ateísmo é verdadeiro é um truísmo, toda minoria de crença vai dizer o mesmo sobre sua crença. Mas é um truísmo que eu digo aqui porque alguns ateus, equivocadamente, veem sua crença como uma conclusão inevitável de conhecimentos científicos ou objetivos.
Essa é uma interpretação demasiado rígida da racionalidade, que está correlacionada a superestimar as capacidades da mente individual. Vejo racionalidade de outra forma, mais dependente de uma cultura da descoberta. E se você tenta fazer uma cultura da descoberta colocando a conclusão na frente dos fatos, já começou errado.
É importante que o indivíduo racional saiba a diferença entre suas posições que são mais doxásticas, especulativas, filosóficas, e aquelas posições que têm um parentesco mais próximo com os fatos. É claro que eu penso que o modo como eu interpreto os fatos está mais correto que o dos outros. Mas se eu for seguro demais disso, abandonando a consciência da minha própria falibilidade, estou traindo a verdade e a razão, não servindo-as. O ateísmo faz parte das minhas interpretações mais especulativas dos fatos que observo e trajetos lógicos que percorri. Não faz parte das coisas que afirmo com mais segurança sobre como o mundo se revela diretamente para mim, seja no jornalismo, seja na ciência.
Por que não sou agnóstico, então? Porque o agnosticismo parece afirmar que não é possível nem ter uma noção da probabilidade de deuses existirem. Discordo. Acredito que não vou ser atingido por um meteoro amanhã, porque a probabilidade é baixa. E acredito que Deus não existe, porque a probabilidade é baixa. Em outras palavras, posso estar errado, mas não acho que estou.
Pergunte a um bom estatístico ou matemático se probabilidades são objetivas ou subjetivas, que a coisa complica muito rápido, mas serve para voltarmos ao que eu disse: posições doxásticas (opinativas) são uma coisa, posições de conhecimento são outra.
A conversão de Ayaan Hirsi Ali e suas consequências
O neoateísmo perdeu o fôlego como movimento pela mesma razão que a Liga Humanista morreu: uma parte substancial dos ateus se converteram à crença irrazoável do woke, do identitarismo. Prova disso foi o que aconteceu com a rede de blogs “Free Thought Blogs”, onde foi proposto explicitamente que as pessoas aderissem a uma versão politizada de ateísmo que chamaram de “Ateísmo+” — a semelhança com as siglas ridículas do movimento LGBT tomado pelo identitarismo é notável.
Alguns chamam esse fenômeno de “mission creep”, e é mais comum na esquerda: começa-se fundando uma entidade para promover mais parques para cães, termina-se falando da necessidade urgente de oferecer hormônios para transexuais presos por imigração ilegal. O meu termo para isso é venda casada de pautas.
A venda casada de pautas no ateísmo é um sinal de que o ateísmo não é inspirador o suficiente para os ateus, fica chato muito rápido, então procuram outras causas. Outra diferença notável se compararmos com crenças religiosas, que atuam mais como cola pró-social.
Talvez o golpe de misericórdia que finalmente matou o neoateísmo tenha sido a conversão da inteligente ex-muçulmana Ayaan Hirsi Ali, que nasceu na Somália, foi parlamentar nos Países Baixos e se casou com um influente historiador britânico que ganhou título de sir. Suas denúncias muito precisas e inteligentes contra o islã atraíram a admiração de Dawkins, e a própria se dizia ateia.
Mas em novembro de 2023, fazendo uma esperta referência ao título de um livro de um dos papas do ateísmo, Bertrand Russell, ela publicou o texto “Por que agora sou cristã”.
Para resumir os motivos dados por Ayaan para sua conversão: ela estava deprimida, procurando conforto no álcool. Ela ouviu um conselho do filósofo conservador Roger Scruton: “se você não acredita em Deus, ao menos acredite na beleza”. Buscou a beleza da arte clássica, com frequência feita por inspiração religiosa. Quando seu terapeuta perguntou a ela que Deus ela gostaria que existisse, ela disse que a descrição que ela fez ficou cada vez mais parecida com o Deus dos cristãos. Ela acrescentou — para maior irritação de seu amigo Dawkins — que escolheu acreditar porque estamos em um momento histórico de crise do Ocidente e precisamos de uma boa base para resistir ao avanço do islã.
Dawkins, contudo, continua perguntando: “mas é verdade?” — Eu também.
Ateísmo e democracia
A jornalista Bari Weiss teve que sair do New York Times em 2020 porque o ambiente da redação estava insuportável com a lacração dos identitários e os cancelamentos. Ela fundou seu próprio veículo, The Free Press, comprado este ano pela Paramount por US$ 150 milhões. Contei a história em mais detalhe aqui. Weiss é judia e lésbica.
Esta semana, deparei-me com Jerry Coyne, um biológo evolutivo ateu à moda de Dawkins com um blog popular, reclamando de uma reportagem do Free Press bem similar àquela da Superinteressante que li há 24 anos. Como resume Coyne, a matéria alega que temos uma “lacuna em forma de Deus” no coração e que estaria havendo nos países ocidentais desenvolvidos uma ressurreição do cristianismo, para usar a palavra apropriada. Como Coyne, duvido da força desse fenômeno, a tendência das últimas décadas tem sido o crescimento dos sem religião.
Talvez diferente de Coyne, não vejo nisso sinal de progresso ou atraso, eu não me importo com que parcela da população concorda comigo nesse assunto — ser tolerado é suficiente.
Mas Coyne tem razão em reclamar. Fiz, então, a reflexão abaixo, que antecede o resto deste texto.
Não sou nenhum fanático do racionalismo. Quando a ATEA (na época, associação de ateus rival da Liga Humanista) propôs trocar o Natal pelo Newtal em homenagem a Isaac Newton, escrevi que a ideia era ridícula, primeiro por ignorar a transição do calendário juliano para o gregoriano desde a morte do físico (mudança que trocou a data de nascimento de 25 de dezembro para 4 de janeiro), segundo porque Newton simplesmente não era uma boa pessoa.
Por toda admiração que podemos ter pelo intelecto de Iaac Newton, muitas pessoas que ele acusou de forjar moedas quando chefe da Casa da Moeda da Inglaterra foram esquartejadas pelo Estado. Além disso, ele tinha uma postura horrorosa e invejosa contra Robert Hooke, um gênio e polímata que contribuiu para a física, a biologia e a geologia. É possível que Newton tenha ordenado o sumiço do retrato de Hooke da Royal Society e por isso nunca mais conheceremos o rosto do gênio (como propõe John Gribbin no livro “Science: A History”).
Enfim, Jesus dá de dez a zero em Newton, em questão de caráter. Seria pura implicância com religião tentar ressignificar a data comemorativa. Alguns ateus são tão obcecados por derrubar toda e qualquer crença religiosa que se perdem em causas questionáveis como a alegação de que Jesus nunca existiu. Cito como exemplo disso Richard Carrier, um ateu que também se tornou ridículo por embarcar na moda woke (ele era parte do Ateísmo+).
Basta comparar os argumentos de Carrier com os de Bart Ehrman. O fato de Carrier ter transformado a discordância com Ehrman em uma briga pessoal é prova adicional de que Carrier está errado. Ehrman tem a calma do acadêmico que sabe que tem razão: há mais evidências de que Jesus existiu do que pelo contrário. Na verdade, há mais evidência de que Jesus existiu do que para a existência de Sócrates, embora eu também não pense ser útil ou condutivo à verdade questionar a existência de Sócrates.
Dito tudo isso, o que é irritante para os ateus em textos como o criticado por Pinker e Coyne é que, com frequência, alguns religiosos não estão dispostos a simplesmente conviver conosco sem inventar mentiras sobre nós.
Uma das mentiras é que não dá para viver vidas boas e éticas sem crença em Deus. Não só temos exemplos pelo contrário, como sabemos que a alegação é uma grande traição à tradição filosófica ocidental desde o Dilema de Êutifron, em um diálogo de Sócrates em que é atingida uma aporia (um estado de indecidibilidade) sobre crença em Deus ser ou não um pré-requisito para sabermos o que é moralmente bom.
Se é indecidível, isso abre espaço para ser ao menos possível a vida ética não-religiosa. Portanto, não é verdade a alegação de que o teísmo como exigência para a moralidade seja um pilar da Civilização Ocidental. Ao menos que se alegue que Sócrates não faz parte dessa herança civilizacional. Sem falar que os deuses em que Sócrates acreditava eram muito diferentes do Javé do cristianismo, o que significa que também é indecidível se a crença em múltiplos deuses é necessária para a vida moral.
Eu não diria a um órfão que perdeu a mãe “acredito que sua mãe se foi para sempre, que tudo o que ela era estava contido no cérebro, que agora se deteriorou”. Eu diria “acredito que ela foi para o céu”. Porque é a coisa certa a se fazer. Mentirei para crianças, assim como minto sobre o Papai Noel, sobre o que eu acredito de verdade.
Mas não mentirei para adultos, não importa o quanto eles insistam que seria tão bom que eu mentisse, porque uma ou outra mentirinha branca vai salvar a civilização, ou curar a depressão de Ayaan Hirsi Ali etc.
Como adultos dotados de razão, um presente de Deus ou um feliz acidente da evolução, temos que aprender a conviver com a rejeição de crenças que sacralizamos. Quando vejo as insinuações dos textos sobre ateus convertidos ao cristianismo, penso imediatamente duas coisas: (1) por que esta religião específica e não outra, sei lá, jainismo, judaísmo, xintoísmo? Ser a religião dominante na sua cultura é um ponto a favor de sua verdade por que razão, em vez de algo que levanta suspeitas de parcialidade?
(2) Por que essa apreensão toda contra o ateísmo? Será que alguns têm medo até de pensar “e se os ateus estiverem certos?”, porque simular um mundo sem Deus que faria sentido na própria cabeça seria o primeiro passo para a perda da fé? Parece um temor natural, mas que merece exame, como o medo da morte.
Também me sinto meio ofendido quando encontro criaturas que constroem argumentos contra a democracia, de Jason Brennan a Hans-Hermann Hoppe e Curtis Yarvin. Mas espero ter a sabedoria de não responder a eles com “não há moral sem democracia”, nem “o tolo diz em seu coração: ‘abaixo a democracia’”, mas construindo argumentos melhores sobre as razões pelas quais eles estão errados.
Se eu falhar em construir esses argumentos, aí creio que eu teria a obrigação de considerar mais a sério se eles têm razão. Seria triste concluir que a democracia é uma coisa equivocada. Mas se for a verdade, paciência. Quem diz que valoriza a verdade, mas se recusa a aceitar verdades tristes, está simplesmente mentindo para si mesmo.
Uma coisa tem a ver com a outra: democracia é um sistema de governo em que a decisão depende da pluralidade de pontos de vista. Não seria bom para qualquer crença, seja ateísmo, agnosticismo ou as numerosas variações de teísmo, que concluíssemos que a democracia é equivocada.
Gostaria de acreditar na democracia, e acredito. Mas não escolhi acreditar na democracia, não acho que crer é uma questão voluntária, mas involuntária — algo que brota de dentro em resposta ao que observamos e pensamos, por decisão própria ou não. Acredito na democracia porque tenho fé em bons argumentos.
Uma dúvida. Dado que você é ateu, sua metafísica é a naturalista ou materialista ou fisicalista; ou seja: o fundamento da realidade são coisas físicas regidas por leis mecânicas. Disso se levantam várias questões (na realidade, um cipoal de problemas elusivos). O primeiro - e mais complexo, que nunca vi um ateu responder (e eu leio filósofos ateus sofisticados) - é em relação à contingência: suponhamos que o Universo é eterno (se é eterno ou não, tanto faz); o Universo, sendo eterno, é contingente; tudo o que é contingente não possui sua própria causa, sua própria existência de sua própria natureza; algo que não possui, ontologicamente, a causa de sua própria existência, depende de outra coisa para existir; portanto, o Universo depende de algo mais nevrálgico para existir. Clarificando esta questão com uma analogia. Isto é o mesmo que as luzes solares fossem eternas: elas, ainda assim, precisariam do Sol para causá-las continuamente, para atualizá-las continuamente na existência, uma vez que elas não têm poderes causais para mantê-las na existência; em outras palavras, são ontologicamente pobres. Disso se segue que não adianta, por exemplo, apelar para uma regressão infinita: não se explica a existência, uma vez que nenhum evento é causa de sua existência, apenas que os eventos são eternos no passado. Uma resposta que vi a esse problema foi de John Leslie Mackie - grande filósofo analítico da Religião, que eu admiro -: o que é primordial é um pedaço de matéria, e, a partir disso, podemos então explicar a evolução, o Universo e a Vida; e esta explicação é a mais parcimoniosa, uma vez que não precisamos postular a existência de um Deus. Muito bom. Excelente. Fantástico. Contudo, se levanta um problema insoluvelmente elusivo: seja um pedaço de matéria, seja uma partícula fundamental, isto ainda é contingente. Com efeito, Mackie aceita um fato bruto; contudo, é algo sumamente ilógico; visto que se é aceito uma partícula fundamental (ou qualquer outra coisa física ou estado mental) como fato bruto, essa coisa carrega consigo uma necessidade metafísica, sendo, todavia, contingente. Assim, o ateísmo se fundamenta em uma Contingência Absoluta - o que é, deveras, contraditório.
O segundo problema é da consciência intencional. Dado que o fundamento da realidade para o ateísmo são estados físicos ou mentais (pode ser um naturalismo idealista) mecânicos, sem significado, discretos, ilógicos e soltos, o que ocorre é que essa metafísica não consegue explicar o fenômeno da consciência intencional - que é totalmente contrária à sua base subveniente -: teleológica, significativa, unitária, lógica e coerente. Pior: não consegue sustentar a Razão, na medida em que a Intencionalidade é uma característica da Razão. Não adianta apelar a dualismos de propriedades, a panpsiquismos naturalistas, a naturalismo biológico, a funcionalismo, enativismo etc. porque todos sustentam a metafísica naturalista sobredita. Por conseguinte, o ateísmo precisa sustentar uma tese da mente (claro, tácita) que é um dualismo de substâncias: há o res cogitans e o res extensas; no entanto, é um mistétio como a Matéria e a Mente interagem; e, como diz David Bentley Hart, a Razão abomina o dualismo (e eu digo que abomina também o ateísmo, ou naturalismo, ou materialismo ou fisicalismo).