Avaliando Charlie Kirk: o joio e o trigo nas alegações contra a vítima de violência política
Neste texto, ofereço o que concluí nos 11 dias desde a tragédia, sem cair em romantização do falecido.
Creio estar numa posição rara para avaliar Charlie Kirk como pensador e comentarista: por um lado, não partilho da fé dele, não me considero conservador, e já fiz uso do meu direito ao casamento civil gay em 2014, união contra a qual Kirk tinha objeção teológica. Já produzi listas de pontos em que concordo com os progressistas — mas me considero liberal clássico.
Por outro lado, não tenho preconceito contra conservadores, com os quais cultivo amizades e um projeto em comum de oposição ao impulso revolucionário. Dediquei uma década da minha vida a criticar o identitarismo e outros excessos do progressismo.
Passaram-se 11 dias desde o trágico assassinato de Kirk, aos 31 anos, por um homem com sinais claros de aderência à cartilha da extrema esquerda. Segundo mensagens publicadas pelas autoridades, o assassino disse que matou o conservador porque estava “farto do ódio dele. Alguns ódios não podem terminar com negociação”.
Como escrevi antes, esse expediente de tentar reduzir o pensamento discordante alheio a puro “ódio” é um favorito da esquerda. Estudos sugerem que progressistas não compreendem bem os conservadores, enquanto muitos conservadores costumam não só entender como pensam progressistas, como frequentemente já ocuparam essa posição mais cedo na vida. Desconhecimento é um dos ingredientes da intolerância.
Uma pesquisa do instituto YouGov publicada dois dias após o assassinato de Kirk em Utah mostrou que os autodeclarados progressistas americanos são quase quatro vezes mais propensos a aceitar a violência política comparados aos conservadores. (Ambos na faixa etária entre 18 e 44 anos.) Cerca de um quarto dos progressistas adultos americanos aceita o uso de violência para fins políticos “às vezes”, contra 7% dos conservadores.
Antes de passar às minhas considerações, recomendo meu texto anterior sobre difamações póstumas já feitas contra Kirk. Ali, também falo sobre possíveis excessos na onda de “cancelamentos” contra a esquerda americana.
Um ativista acima da média
Antes do assassinato do Charlie Kirk, já o conhecia por clipes. Considerava seu trabalho “OK”. Seu ativismo, na organização que fundou em 2012 (Turning Point USA), consistia em levar argumentos de posições geralmente conservadoras para a porta de universidades, onde ele sabia que encontraria uma maioria de progressistas. A frase impressa e visível no momento de sua morte dizia tudo: “Prove que estou errado”.
Sua postura era geralmente respeitosa, às vezes irônica e, claro, os momentos em que ele se saía muito bem contra os estudantes eram selecionadas para viralizar nas redes sociais. Mas não é verdade, como alegou o South Park em sua sátira, que Kirk só postava os casos em que se saía bem. Ele não se saiu tão bem como de costume em um debate sobre armas, mas postou a discussão na íntegra.
Depois de 11 dias estudando mais a fundo o trabalho de Kirk, vi que era mais que OK, era acima da média. Compare com alguém de esquerda com influência comparável. A escritora brasileira Márcia Tiburi, por exemplo, publicou um livro com o título “Como conversar com um fascista” (Record, 2015). Quando o deputado Kim Kataguiri, a quem ela já xingou de fascista, apareceu para debater com ela em uma rádio, em 2018, ela fugiu. Kirk não fugia do debate.
Já o youtuber Felipe Neto, que deu uma guinada para o progressismo e o petismo depois de ter sido um crítico exagerado desses movimentos, lançou um livro supostamente contra o ódio em que prega o ódio contra supostos “intolerantes”.
Quando digo que Charlie Kirk está acima da média do ativismo político, não se trata de romantizar o morto. Em mais de uma ocasião, ele enfrentou gente intolerante “do próprio lado”. Só isso já é algo raro de se achar em comentaristas políticos em geral.
Por exemplo, ele disse para um homofóbico que os EUA não eram uma teocracia e que, mesmo que ele concordasse teologicamente que casamento é só entre homem e mulher, a interpretação teológica particular dele não tinha que ser a lei do país. “Jesus Cristo falava com todas as pessoas”, acrescentou Kirk.
Isso se chama tolerância. Costumava ser a meta do ativismo LGBT, quando este movimento usava argumentos liberais, antes de ser tomado pelo identitarismo e a noção equivocada de que se deve exigir “aceitação” — ou seja, a empáfia de querer mandar no coração do outro.
Não há evidências suficientes de que Kirk era racista
Uma das difamações póstumas mais comuns contra Kirk foi a acusação de racismo. Isso foi feito especilamente no Bluesky — o inferninho progressista decadente que falhou em substituir o Twitter — pela alteração fraudulenta de uma citação real de Kirk.
Na citação real, ele estava falando de mulheres negras proeminentes específicas (a comentarista Joy Reid, a ex-primeira dama Michelle Obama e a juíza da Suprema Corte Ketanji Brown Jackson, entre outras) que confessaram em público terem sido favorecidas por cotas raciais. Ele disse, provocativamente, que ao confessarem o favorecimento elas só provavam que não tinham poder de processamento cerebral e tomavam posições que poderiam, de outra forma, ter sido ocupadas por pessoas brancas.
Insensível, talvez, especialmente considerando que uma das citadas na lista cresceu ainda no contexto da segregação (Sheila Jackson Lee) — se foi desfavorecida pela lei e pelo sistema, faz algum sentido que seja favorecida, como reparo.
Mas não era, como fraudulentamente circularam na imprensa, uma afirmação sobre mulheres negras como grupo, mas contra indivíduos politicamente ativos na ideologia progressista ou no Partido Democrata que eram mulheres negras. Diferença importante, pois é a diferença entre racismo e retórica política.
Kirk usou o mesmo argumento sobre cotas em outras oportunidades. Em suma, o argumento dele é que as cotas (ou “ações afirmativas”) criam desconfiança contra os próprios favorecidos. Ele disse que sem cotas não faria sentido ficar com receio de ter um piloto negro, por exemplo. Mas com cotas, sim, porque enfraquecem o critério do mérito na escolha do profissional para certa função. Alguns fatos favorecem essa ideia, como a história de um cirurgião favorecido que se revelou um açougueiro (Patrick Chavis).
Concorde-se ou não, é um argumento cogente e não baseado em premissas racistas. A propósito, a imprensa progressista também tirou de contexto o exemplo sobre pilotos.
Charlie Kirk chegava a concordar com a esquerda sobre raça
Charlie Kirk ia além: ele acompanhava a esquerda ao afirmar que “raça é construção social”. Há problemas nessa alegação, como mostro no meu livro “Mais iguais que os outros”. Porém, da forma como as opiniões se distribuem, essa alegação acaba sendo um marcador de oposição ao racismo, já que os racistas abusam da noção de que raça existe objetivamente para afirmar uma hierarquia moral entre raças. (Para resumir meu argumento: faz tanto sentido condicionar a oposição ao racismo à alegação de que não existem raças quanto condicionar a oposição à homofobia à alegação de que não existem orientações sexuais.)
Kirk chegava a exagerar essa posição afirmando que não dá para descobrir se uma pessoa é negra ou branca pela análise de seu DNA. Isso não é verdade. Há cerca de 60 genes humanos que influenciam a cor da pele. Sabemos inferir até a cor da pele dos neandertais. Um ex-colega de laboratório meu descobriu que os neandertais podiam ser ruivos.
Há também outros clipes de Kirk tratando interlocutores negros com respeito e enchendo uma mãe negra de elogios por sua filha também negra. Aqui, lembro os identitários que alegavam que “tenho amigos negros” não é uma boa objeção quando alguém é acusado por eles de ser racista. Pode não ser uma objeção suficiente, mas o fato é que ter amigos negros, ou tratar bem pessoas negras, tem uma inegável correlação positiva com ser contra o racismo antinegros.
A acusação mais justa contra Kirk: adesão à “teoria da grande substituição”
Duas acusações contra Kirk são verdadeiras: que ele criticou a Lei de Direitos Civis dos Estados Unidos, aquela que eliminou a segregação racial no Sul, e que ele aderiu à ideia da “grande substituição”, isto é, que a esquerda ou o Estado teria o plano de substituir a população nativa no Ocidente para perpetuação de poder.
Não é possível defender a aderência de Kirk a essa última ideia. Sua formulação e proposição sempre teve um elemento de teoria conspiratória. Essa ideia não explica, por exemplo, por que razão as pessoas de países ricos estão tendo cada vez menos filhos. Por acaso os imigrantes de outras culturas e raças estão impedindo ingleses brancos de se reproduzirem? Isso não faz sentido. Parte do fenômeno é culpa das próprias populações nativas e suas culturas que defendem hábitos contrários à formação de famílias e à reprodução. A Coreia do Sul, por exemplo, vai colapsar em cerca de 30 anos se não der uma guinada na queda da taxa de fecundidade.
No máximo, vale examinar por que razão Joe Biden foi tão fraco em combater a imigração ilegal, por que os progressistas do país e na Europa insistem tanto em defender essa ilegalidade em vez de reformar as leis, aplicando em violadores de lei eufemismos como “imigrante não documentado” em vez de “ilegal”.
Então, parabéns aos críticos, finalmente acharam uma ideia impalatável defendida por Kirk. Ele ainda não merecia ter morrido por acreditar nisso ou expressar essa ideia. Ele merecia ser desafiado em debate a respeito, como ele próprio pedia em suas aparições públicas.
Quanto à crítica à Lei de Direitos Civis, só mostra que Kirk era um conservador, ou, como ele próprio dizia, “conservatário”, misturando “conservador” com “libertário”.
O progressismo quer tratar como abominável, inaceitável e criminoso que alguém discorde de seu igualitarismo. Mas discordar de seu igualitarismo é justamente o que define o liberalismo clássico, o libertarianismo e o conservadorismo.
Deixo para o Instituto Mises dos EUA, libertário, explicar por que motivo alguém poderia ter críticas contra a Lei de Direitos Civis:
Na década de 1960, como hoje, havia pouca clareza sobre o que exatamente a lei pretendia alcançar. Na medida em que havia algum consenso, ele estava na ideia de que as leis Jim Crow [de segregação racial] eram abomináveis e deveriam ser revogadas. Colocado dessa forma, parece de fato um princípio com o qual a maioria das pessoas concordaria. Mas, como mostra Christopher Caldwell em seu livro Age of Entitlement, a lei nunca foi destinada apenas a revogar Jim Crow. Assim que aprovada, rapidamente se estabeleceu como um modelo para a visão progressista da sociedade ideal – em essência, uma nova Constituição. David Gordon ressalta esse ponto em sua resenha, abordando o argumento de Caldwell de que a Lei dos Direitos Civis funciona, na prática, como uma constituição de fato; é “uma constituição rival, com a qual a original era frequentemente incompatível — e a incompatibilidade pioraria à medida que o regime dos direitos civis fosse sendo construído.” Como observou Helen Andrews em sua resenha, Caldwell argumentou que a Lei dos Direitos Civis não apenas funciona como uma constituição rival, mas uma que possui um status quase reverenciado.
Os progressistas e socialistas podem não gostar, mas as pessoas têm direito a discordar que a coisa mais importante que um Estado tem para fazer é aplicar seu monopólio da força na redução de desigualdades de resultados. Existem alternativas à sua visão política de mundo. E não são crimes. Na verdade, o liberalismo clássico é muito superior ao progressismo de todo ângulo que se analisar. Basta estudar.
Conclusão
Os tiros da extrema esquerda, tanto o literal quanto o metafórico da difamação póstuma, saíram pela culatra e só tiveram o efeito de exacerbar as virtudes do alvo. Quem faz oposição ao conservadorismo de Kirk deveria ver nele o melhor adversário possível: ponderado, bem lido, bem articulado e tolerante.
Mas os mais dogmáticos não querem bons adversários. Querem os piores. Adversários que se encaixem na caricatura que se faz de conservadorismo e trumpismo (certamente o ponto mais fraco de Kirk, apostar tantas fichas em Trump) são preferíveis para quem não tem virtudes, mas quer parecer ter virtudes por contraste com eles.
O progressismo identitário, intolerante, sem argumento, que trata o debate político como uma atividade de consulta no Manual de Diagnóstico de Pecados contra o Bem — como um psiquiatra diagnosticando pacientes com o DSM —, quer mais racistas, misóginos e homofóbicos no espaço público, porque é só ao lado deles que, por contraste, parece uma posição política razoável. Como a mulher de aparência mediana que leva a amiga feia na festa para parecer linda por comparação.
Progressistas mais moderados e centristas lamentaram a morte de Kirk. Por exemplo, a colunista Nellie Bowles, esposa da jornalista Bari Weiss:
“Acho que o medo é que, se o assassino for de esquerda, isso justificaria algum tipo de repressão contra progressistas comuns, então todos nós devemos mentir. Mas nenhuma repressão é justificável, independentemente do tipo de videogame pornô que esse rapaz jogava ou de quem era seu colega de quarto! E não é função de um repórter mentir! Se uma lésbica centrista saísse atirando por aí, eu diria (1) isso é ruim e ela deveria ir para a cadeia gay, e (2) eu não tenho nada a ver com ela e não deveria sofrer represália tribal. Mas, veja, o repórter moderno acredita em represália tribal. E por isso o repórter moderno deve mentir sobre o assassino.”
Eu quero um mundo com mais debate, mais conversa, mais entendimento e mais confronto de argumentos, em vez de confronto de pessoas, entre carne e bala. Portanto, eu quero um mundo com mais Charlies. Descanse em paz, Charlie Kirk. Este brasileiro ateu, gay, liberal e pró-escolha lamenta profundamente a sua morte.