"Tudo é narrativa": um trem muito doido
Para o senso comum, contar histórias é diferente de relatar fatos. As pessoas têm essa intuição. Lá em Minas, onde eu cresci, a primeira coisa é conhecida como "contar um causo".
Pode ter um fundo de verdade no "causo", mas a percepção é que não se deve dar muito crédito. O propósito do "causo" é entreter, mais que informar. Se for pra contar como é a melhor forma de fazer uma rapadura, os mineiros não vão querer um "causo", vão querer uma receita. Vão querer saber o que, de fato, deve ser feito para a rapadura ficar boa. Se querem saber se o padre andou pecando com alguma beata, até pode-se contar um "causo" a esse respeito, mas sabem muito bem que "causo" não basta pra acusar nem saber, de fato, se isso aconteceu. Evidências são necessárias. Só se abre a boca, se é pra acusar publicamente e a sério, quando se tem certeza.
Mas tem uma certa tradição acadêmica que acha que sabe mais que nóis, sô. Acham que tudo é causo. Tudo é uma narrativa. É gente gulosa, que acha que vai explicar tudo sem queimar a pestana.
Trata-se de um reducionismo ganancioso: todas as coisas que as pessoas dizem - teorias, hipóteses, argumentações legais, investigações criminais, receitas de rapadura, tudo é narrativa. Por que? Porque algum doutor disse. Geralmente algum doutor careca da França.
Quando alguns físicos dizem que tudo deve ser entendido com termos teóricos da física, como ondas, partículas ou supercordas, e que todo o resto é postiço, há uma revolta justificada. Ainda que estejam certos quanto à base das coisas ser física (reducionismo ontológico), estão muito longe de estar certos quanto a tudo ter de se reduzir aos termos da física para ser entendido (reducionismo teórico). Basta desafiar um físico a traduzir tudo o que Darwin disse em termos da física, sem mencionar organismos, reproduções ou populações, ou explicar o que é democracia sem falar em povos, cultura, leis e ética, para eles acordarem de seu sono reducionista ganancioso. No entanto, quando a ganância, a gula intelectual, vem do departamento de linguística ou literatura ou filosofia, então não é tolice como a tolice desses físicos: é alta intelectualidade acadêmica. E de repente falar que tudo é "narrativa" vira coisa inteligente.
Uai, esse trem é doidimais.