Religião (cristã): o problema da coerência
Por algum tempo eu venho dizendo que moderação nas religiões abraâmicas é como uma galinha chocando os ovos do Godzilla. Os argumentos a seguir explicarão.
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Se os cristãos moderados propõem que o mito da criação é uma metáfora, não têm onde pôr freios à corrosão ácida que essa 'metaforização' vai causar nos relatos bíblicos.
Estarão somente selecionando o que lhes convém para julgar como literal, como a concepção da Virgem Maria (para os católicos), ou a paternidade divina de Jesus.
Metáfora por metáfora, Javé será uma metáfora para as leis da física? A história de Jonas e a baleia é uma metáfora? A história da ressurreição de Lázaro é metafórica? E a da filha de Jairo? E a multiplicação dos pães, o milagre de Canaã, o andar sobre as águas, a aparição para Tomé? Ora, todos esses relatos gozam de tanta santidade e evidências quanto o mito da criação em seis dias, a mulher vindo da costela e o dilúvio universal (os pontos favoritos para metaforizar atualmente).
Os fundamentalistas estão 'certos' em dizer que tudo é literal na Bíblia, porque foi assim que sempre funcionou e a metaforização contemporânea seria vista como uma heresia pela maioria dos líderes cristãos que já existiram.
É claro que para fazerem isso os fundamentalistas precisam se resguardar numa patética ignorância (e relutância) quanto aos fatos da natureza e as descobertas científicas.
Desse modo, mais coerentes ainda são os cristãos da chamada "ciência cristã" que se recusam a tomar remédios obtidos pela ciência (a verdadeira) e preferem esperar por milagres para curar coisas como gripe e câncer. Estão sendo coerentes com sua religião, assim como são os homens-bomba com o Islamismo.
Se o Corão incita os seus fiéis a matar os infiéis, quem são os moderados muçulmanos para dizer não?
Desconfio até que existem moderados porque eles não suportam a precariedade de seus próprios livros sagrados e são pessoas sem fé! Se a Bíblia diz que todas as espécies de animais foram botadas numa arca de alguns côvados de comprimento e largura, os moderados precisam ter fé na palavra sagrada! Se o Corão diz para cortar os pés e mãos dos infiéis em lados alternados, os muçulmanos precisam ter fé nisso também.
Certas coisas precisam ser absolutas e não admitem a hipocrisia da moderação ou do meio-termo. Moderados não seguem suas religiões, mas continuam se dizendo pertecentes a elas apesar delas mesmas.
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Se você se diz parte de uma religião, mas considera certos pontos do que ela diz mera metáfora, então você não é legitimamente parte da religião. Se cada um está livre para considerar este ou aquele ponto uma metáfora, e não há critério quanto até que ponto a metáfora vai, então podemos ter dentro dessa religião um ateu que levou a metáfora até suas últimas conseqüências (o que fica tão coerente quanto o fundamentalismo).
Se há tanto livre pensamento dentro da religião considerada, então ela se desmembrou e se decompôs por dentro. Não é mais uma religião (no sentido restrito de ser uma manifestação coletiva).
Meu 'problema' não é com o modo tão comum de interpretar a religião através de acepções pessoais - acho até admirável do ponto de vista de acalmar os ânimos. Meu problema é com a coerência filosófica que resultará disso.
É tradição querer organizar as coisas, e é isso que desejo saber, o que restará a ser organizado se for proposto algo menos que "8 ou 80" quanto às afirmações do cristianismo?
Bart D. Ehrman diz: "os textos podem ser interpretados, e são interpretados (assim como foram escritos) por seres humanos que vivem e respiram, que só podem extrair sentido dos seus textos explicando-os à luz de seus outros conhecimentos (...). Por isso é que ler um texto é, necessariamente, mudá-lo".
Mas é de se espantar que um ser onisciente e onipotente prefira se manifestar por maneiras tão obscuras. Para mim parece uma pista da falsidade dele, pois o mínimo que eu posso esperar de um ser inteligente (mais inteligente que todos nós) é que ele se expresse com o mínimo de lógica num texto sagrado que não dê espaço para interpretações escusas de caráter íntimo. Afinal de contas, ele criou ou não criou o mundo? Se posso interpretar o mito bíblico como metáfora, o que me impede de interpretar a criação em si como metáfora, algo que não aconteceu literalmente?
Sem essa de 'linhas tortas', também. Se Deus quer ser adorado e receber orações, seria lógico que tivesse um comportamento livre de obnubilações. Se ele permite tanta liberdade de interpretação para o que ele disse, então ele permite muitas interpretações referentes à sua própria natureza, a maioria delas, por uma questão estatística, plenamente errôneas e até ofensivas. "Fiéis, podem me subestimar até como uma entidade antropomórfica vingativa que cria primatas a partir de barro, mas o importante é que me adorem e paguem o dízimo".
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CIÊNCIA E RELIGIÃO
Modelos científicos não são completamente destruídos. Eles costumam ser melhorados, como o que aconteceu com Newton, com os modelos atômicos, e até com a teoria da evolução. Coisas como a geração espontânea, por exemplo, nunca chegaram a ser modelos científicos per se, porque não conseguiram excluir alternativas.
Já a religião, quando muda radicalmente, costuma ser por meio da força bruta ou do poder, nunca por causa das evidências.
O que deterá a corrosão ácida que a metaforização está causando?
Qual é a escala de fantasia que estão usando para dizer que certa coisa é fantástica demais para ser literal na Bíblia? Porque a história do messias não é tão fantástica quanto a da criação do gênesis?!
Há muitas limitações biológicas impostas à história da concepção da virgem, e elas podem ser tão numerosas quanto as limitações à criação divina de seis dias.
Se estou sendo radical demais ao exigir um 8 ou um 80, é porque não vi nenhum método confiável apresentado pelos cristãos que seja justo ao julgar o que é metáfora na Bíblia.
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TEOLOGIA LIBERAL
Três elementos da Teologia Liberal segundo o bispo anglicano Dom Sumio Takatsu (apenas os parágrafos com número):
(1) "É receptivo à ciência, às artes e estudos humanos contemporâneos. Procura a verdade onde quer que se encontre. Para o liberalismo não existe a descontinuidade entre a verdade humana e a verdade do cristianismo, a disjunção entre a razão e revelação. A verdade deve ser encontrada na experiência guiada mais pela razão do que pela tradição e autoridade e mostra mais abertura ao ecumenismo."
Traduzindo: "caro fiel, se vire. Se acha que não consegue acreditar ao mesmo tempo em concepção virginal e genética molecular, faça uma sublimação dos dois conceitos, guarde para si, e não me venha com chorumelas. Pode xavecar com religiões que dizem coisas diferentes das que eu digo, não tô nem aí".
(2) "Tem-se mostrado simpatia para com o uso dos cânones da historiografia para interpretar os textos sagrados. A Bíblia é considerada documento humano, cuja validade principal estar em registrar a experiência de pessoas abertas para a presença Deus. Sua tarefa contínua é interpretar a Bíblia, à luz de uma cosmo-visão contemporânea e da melhor pesquisa histórica e, ao mesmo tempo, interpretar a sociedade, à luz da narrativa evangélica."
Traduzindo: "Caro fiel, lembre-se acima de tudo que a Bíblia diz coisas bonitas, portanto alguma coisa deve ter de verdade. Se não sabe por que outros documentos humanos como as cartas que você escreveu para a sua namorada não são considerados sagrados, saiba que a Bíblia é velha, chegou primeiro, então merece estar no altar. Interprete a sociedade baseando-se no sermão da montanha, não no massacre de Jericó, por favor".
(3) "Os liberais ressaltam as implicações éticas do cristianismo. O cristianismo não é um dogma a ser crido, mas é um modo de viver e conviver, caminho de vida."
Traduzindo: "Caro fiel, apenas se diga cristão porque a gente gosta de ver você fazendo isso. Faça o que é certo como nós dizemos, continue a tomar a hóstia mesmo achando que está só comendo um pedaço de farinha. Quanto a Cristo ser Cristo mesmo, esqueça, coma essa farinha e cale a boca".
Os postulados da Teologia Liberal não resolvem o problemão de ter um Deus onipotente e onisciente que não se comporta como tal.
Se Deus deixou que um livro de homens como a Bíblia tivesse justificado tanta besteira em nome dEle, então não é ao mesmo tempo bom e intervencionista. Minha linha de argumentação me leva aos clássicos argumentos de Epicuro:
"Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos Deus?"
Nos moldes da teologia liberal o conceito de Deus como ser inteligente, dotado de poderes e criador da natureza é um conceito tão oco quanto um unicórnio com essas mesmas características.
Se é para metaforizar o Antigo Testamento dando privilégios de literalidade apenas para o Novo Testamento, ainda teremos o problema de saber se há uma ligação válida entre os dois quando o último cita o primeiro.
Existe a interpretação de que Cristo morreu para lavar o pecado original de Adão e Eva. Se a história de Adão e Eva é uma metáfora, Cristo morreu então em nome de caprichos de estilo literário de seu Pai - o que diminui o feito.
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ADAPTANDO EPICURO AO PROBLEMA LITERAL/METAFÓRICO
Deus deseja passar aos homens mensagens explicativas sobre si mesmo e sobre as origens, mas não é capaz de fazer de tal modo que seja uma mensagem literal que não permita interpretações mutuamente excludentes ou refutação com base em evidência? Então não é onipotente.
É capaz, mas não deseja? Então ninguém sabe sobre a sua natureza, nem mesmo que se trata de um ser único ou de um ser que criou o universo.
É capaz e deseja? Então por que os textos sagrados já produzidos pela humanidade são tão etéreos, perdem tanto tempo em homilias, e quase nunca acertam alguma coisa sobre a natureza (revelando assim a limitação de quem realmente os escreveu)?
Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos Deus, e por que sequer o consideramos uma possibilidade plausível quando o único motivo para fazê-lo é nosso desejo de ter um universo aconchegante?
Ou então Deus é apenas algo sem inteligência, a base da matéria e da energia, por isso não é capaz de ditar textos sagrados, nem deseja, nem tem a capacidade de desejar qualquer outra coisa. Algo extremamente simples que deu origem a todo o universo, mas passa longe de ter a inteligência de uma bactéria e a sabedoria de um camundongo.
Me parece que essa é a metáfora para Deus.
Pode-se julgar que é metafórico apenas o que está escrito em linguagem poética na Bíblia?
Não. Isso é subjetivo e seria um método desonesto. O sermão da montanha está em linguagem poética. E então, os bem-aventurados aflitos serão ou não serão consolados? É metafórico, então devo interpretar que os aflitos serão consolados não porque há uma força consoladora que os aliviará, e sim porque o tempo cura a aflição, ou então porque a morte será um consolo porque extinguirá a aflição negativamente.
Cristo andou sobre as águas violando as leis de Newton e acusou os profetas de serem homens de pouca fé. Se a passagem me parece poética, então é metafórica, quer dizer apenas que a fé é um fortificante transformador da personalidade e não um artífice da natureza.
Mas se a passagem não é poética, quer dizer que Jesus violou as leis da Física.
Nenhum problema, afinal ele é o filho de Deus e tinha poder para isso, não é?
OK, ser religioso é acreditar nessas coisas que aconteceriam poucas vezes na história. Mas o que está em discussão aqui é: os religiosos estão dispostos a serem coerentes de modo a acreditar em eventos milagrosos relatados na Bíblia de forma a ignorar sua inconsistência frente à ciência?
Pode existir uma linha contínua de coerência quanto ao modo de considerar um ou outro evento milagroso uma metáfora porque é vergonhosamente inconsistente?
O fato de descartar a literalidade é reflexo de reflexão lógica profunda ou mera seleção com base em apetite?
Dizer que os milagres de Cristo são literais e o dilúvio universal é metafórico só transparece a motivação primordial da religião: humanizar o universo. Julgar que algo é verdade porque é bonito e reconfortante.
Esta motivação, apesar da absurda incoerência, é o que jaz por trás da retórica teológica, da ascenção e queda de dogmas, dos mistérios da fé, dos milagres, e todos os pilares fundamentais do cristianismo.