Lacrando em Oxford: aluna descreve clima sufocante criado pelo identitarismo na instituição
Artigo no jornal britânico The Telegraph, muito comentado esta semana, descreve atmosfera de medo, denuncismo e maquiavelismo na cidade universitária britânica
O artigo abaixo é de uma pessoa anônima membro da União Feminista de Oxford. Foi publicado em 21 de maio de 2023 no jornal The Telegraph. A foto de capa do texto, tirada por mim, é do Sheldonian Theatre, construído entre 1664 e 1669. Fica no centro medieval da cidade e é o local de reunião da Congregação, corpo administrativo da Universidade de Oxford. Falei lá para uma plateia de mil pessoas no Congresso Humanista Mundial, em 10 de agosto de 2014 (foto abaixo).
No meu slide, está o logo da Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), associação que presidi por dois mandatos não consecutivos e morreu por causa de brigas internas motivadas pelo identitarismo (e minha resistência à cooptação da entidade por ele). Enfim, minha história fica para outra ocasião. Fiquem com o texto do Telegraph. Leitores perspicazes vão notar semelhanças do que é descrito com o clima de denuncismo de certos regimes.
Na Universidade de Oxford, alunos agora vivem com medo e acreditam que vão se destacar fazendo cancelamento mútuo
Admito que antes eu tinha prazer em dizer às pessoas que frequento a Universidade de Oxford e, até certo ponto, ainda tenho. No entanto, agora, quando conto isso a algum colega de conferência de forma envergonhada, recebo murmúrios simpáticos e ouço “deve ser difícil”. Não estão falando de sobrecarga de trabalho. Estão se referindo à cultura abismal de intolerância à liberdade de expressão que de alguma forma se manifestou aqui.
E estão certos. Tenho cuidado ao contar para alguém a respeito da minha dissertação sobre o tema do gênero. Meu coração acelera quando uma nova pessoa pergunta o que estou fazendo, e tenho que tomar uma decisão rápida se é seguro contar a ela e se vale a pena. Colegas já perguntaram “Por que você vai ao evento de Kathleen Stock?”1 com olhos apertados e tons suspeitos. Eu passo tanto tempo mordendo minha língua em conversas. Mesmo verdades básicas podem ser completamente inexpressáveis nos círculos errados. Mas estou ficando mais corajosa.
Surpreendentemente, aqueles que são realmente contra a liberdade de expressão são meio raros. Essas pessoas são lideradas por uma minoria muito agressiva, muitas vezes opressores disfarçados de vítimas. Atrás deles estão outro pequeno grupo de ideólogos que odeiam a si mesmos e outros apoiadores confusos, mas bem-intencionados. No entanto, a maioria dos estudantes, descobri, são na verdade bastante sensatos. Mas, à primeira vista, é quase impossível distinguir esses grupos.
Em particular, muitos estudantes confessarão o pecado de concordar com você. Em público, no entanto, é muito diferente. Eles vão curtir diligentemente postagens online condenando pessoas como Kathleen Stock, mesmo que tenham lhe dito o quanto acham que ela é corajosa e o quanto amaram seu livro. Eles vão votar em moções, mesmo que não queiram realmente abrir mão de seus banheiros ou linguagem. Eles têm seus pronomes no Instagram, mesmo que achem constrangedor. E às vezes, eles até lideram a luta para destruir as ideias e as pessoas com as quais concordam em particular.
Tudo isso cria uma ilusão de que todos pensam o mesmo. Uma psicose compartilhada. As roupas de gênero neutro do imperador. Uma vez que você percebe isso, se pergunta por que todos continuam agindo assim, mesmo que estejam trazendo a infelicidade para si mesmos e aos outros. Além da pressão social, a resposta é muitas vezes que estão ganhando alguma coisa, de forma egoísta.
Conexão humana básica está contaminada
Oxford está cheia de jovens muito brilhantes e ambiciosos, que querem ser futuros primeiros-ministros. Combinado com o senso de merecimento de muitos estudantes de Oxford, isso é uma mistura perigosa. Eles farão de tudo para chegar lá, e a sociedade de hoje ensinou a eles que “cancelar”, sinalizar virtude e silenciar é a maneira de subir. Eles passam tanto tempo procurando uma pessoa para “denunciar” ou uma causa para sua luta quanto passam nas bibliotecas. Eles correm para ser os primeiros e fazem perguntas depois. Acuse ou seja acusado. Não há limites para as profundezas às quais irão mergulhar ou para as costas que irão apunhalar.
Muitas vezes me pergunto se existe alguma coisa em Oxford que é feita por diversão ou bondade. Tudo é competitivo. Não foi nenhuma surpresa ouvir que uma nova “rede” foi criada para protestar contra o evento de Kathleen Stock. Lembro-me de quando, no início da invasão da Ucrânia, houve uma corrida entre os alunos para ser o que criou a Sociedade Ucraniana da Universidade. Uma vez formada, foi imediatamente adicionada aos perfis do LinkedIn e do Twitter de alguns dos fundadores vitoriosos, mesmo que eles ainda não tivessem feito nada.
Até a conexão humana básica está contaminada em Oxford. Todo estudante inevitavelmente conhecerá em algum momento o que é conhecido como um “hack” [algo como um “picareta”], e perceberá que não fez um novo amigo entusiasmado (“A gente devia tomar um café algum dia, né?”), mas na verdade, toda a interação foi projetada para obter seu voto para qualquer posição menor à qual eles possam estar concorrendo naquele período. O café nunca vai acontecer, e você não vai ouvir falar deles novamente até que apareçam em suas mensagens, pedindo seu voto.
Dizem que em Oxford “Você não tem amigos, você tem alianças”. No entanto, mesmo essas são instáveis no melhor dos casos. Embora eu imagine que a natureza disso tenha sido a mesma por muitos anos, certamente piorou de certas formas hoje. Em festas e eventos, as pessoas vivem com medo de algo que dizem ou fazem ser gravado. Isso vai além dos efeitos da era da internet — é de conhecimento geral que certas pessoas, especialmente na política estudantil ou no jornalismo, muitas vezes gravam secretamente o áudio de um evento noturno inteiro na esperança de pegar alguém em flagrante.
A pior parte é que não importa quem eles pegam. As pessoas já “cancelaram” publicamente seus amigos mais próximos e até mesmo seus parceiros. Além disso, nada está fora dos limites para ser usado como material. Problemas familiares, saúde mental, relacionamentos — tudo isso pode e será usado contra você.
Preocupantemente, algumas pessoas nem mesmo se sentem limitadas pela verdade. Eles sabem que não há nada que a vítima possa fazer, e tentar fazer qualquer coisa apenas chamaria mais atenção para a alegação, além de exigir longas batalhas e advogados pelos quais nem todos os estudantes podem pagar. O próprio processo é a punição, e a evidência viverá online para sempre. E, graças a uma popular página do Facebook anônima (o conteúdo da qual é controlado por alguns com interesses próprios), os ataques podem ser feitos anonimamente.
O imenso poder da aprovação social
Esses indivíduos perderam a noção da realidade, alimentados pelo ambiente intenso da universidade e por seu senso inflado de importância. Eles governam pelo medo e vivem com medo, numa armadilha tortuosa de sua própria criação e manutenção. Isso é mantido, no entanto, pelas massas cúmplices — por indivíduos que desejam evitar se tornar alvos e pelo imenso poder da aprovação social.
Dado tudo isso, não é surpreendente que a liberdade de expressão esteja enfraquecendo aqui. No entanto, não se deixe enganar pensando que isso significa que os estudantes não a querem. Quando as táticas acima são usadas para ganhar e manter o poder pelos poucos que as empunham melhor, não é surpreendente que os órgãos administrativos estudantis resultantes sejam tão agressiva e não representativamente identitários e lacradores.
Um suspiro coletivo de alívio ressoou pela cidade quando acadêmicos escreveram uma carta em apoio à liberdade de expressão. O ambiente da universidade pode fazer você sentir que é o único com sanidade, e isso é intencional. Talvez a carta quebre o feitiço coletivo que paira sobre os pináculos sonhadores, e os estudantes acordem para perceber que não têm nada a temer e tudo a ganhar valorizando a discussão e o debate, e mais pessoas se tornarão corajosas também.
Espero que o comitê da Oxford Union [sociedade estudantil de debates que existe desde 1823] saiba o quanto muitos estudantes valorizam o que eles fazem e o que representam. Eles estão lutando numa batalha que muitos de nós temos medo de enfrentar. No entanto, para citar a sufragista Millicent Fawcett — “a coragem chama mais coragem em todo lugar”.
Espero que mais estudantes se cansem desse jogo e percebam que palavras e pessoas só podem ter o poder que você lhes dá. Quanto mais estudantes se recusarem a participar, mais cedo poderemos seguir com o que viemos fazer aqui em paz.
Kathleen Stock é uma filósofa e escritora britânica. Ela foi professora de filosofia na Universidade de Sussex até 2021. Ela publicou trabalhos acadêmicos sobre estética, ficção, imaginação, objetificação sexual e orientação sexual. Suas opiniões sobre as pessoas trans se tornaram uma questão controversa. Em dezembro de 2020, foi nomeada Oficial da Ordem do Império Britânico (OBE) em reconhecimento aos serviços prestados ao ensino superior, decisão que foi posteriormente criticada por um grupo de mais de 600 filósofos acadêmicos que argumentaram que a “retórica preconceituosa” de Stock contribuiu para a marginalização das pessoas trans. Em outubro de 2021, ela renunciou a seu cargo na Universidade de Sussex. Isso aconteceu após uma campanha estudantil pedindo sua demissão e o sindicato dos docentes ter acusado a universidade de “transfobia institucional”. Um grupo de mais de 200 filósofos acadêmicos do Reino Unido assinou uma carta aberta em apoio à liberdade acadêmica de Stock.