Óvulos e espermatozoides humanos rudimentares produzidos a partir de células-tronco
Por David Cyranoski, Nature News. Tradução de Eli Vieira
Um feito atingido pela primeira vez em humanos poderia ser um passo na direção da cura da infertilidade.
Pesquisadores israelenses e britânicos criaram espermatozoides e células precursoras de óvulos numa placa a partir das células da pele de uma pessoa. A façanha é um pequeno passo na direção de um tratamento para a infertilidade, embora possa enfrentar controvérsias significativas e empecilhos regulatórios.
O experimento, publicado online na revista Cell em 24 de dezembro¹, recria em humanos parte dos procedimentos primeiro desenvolvidos em camundongos, nos quais células chamadas de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS) — células ‘reprogramadas’que podem se diferenciar em quase qualquer tipo de célula — são usadas para criar espermatozoides ou ovócitos que são subsequentemente manipulados para produzir embriões por fecundação in vitro.
Em 2012, o biólogo especialista em células-tronco Mitinori Saitou, da Universidade de Kyoto, Japão, junto a seus colaboradores, criou as primeiras células germinativas primordiais artificiais (PGC's)². Essas são células especializadas que emergem durante o desenvolvimento embrionário e mais tarde dão origem a espermatozoides ou ovócitos. Saitou os fez numa placa, começando com células da pele reprogramadas para um estado similar ao embrionário através da tecnologia de células iPS. Os cientistas também conseguirem atingir o mesmo resultado começando com células-tronco embrionárias.
Embora suas células não pudessem se desenvolver além desse estágio precursor na placa, Saito descobriu que se as colocasse em testículos de camundongo elas se maturariam em espermatozoides, e, se as colocasse em ovários, maturar-se-iam em ovócitos funcionais. Ambos espermatozoides e ovócitos poderiam ser usados para fertilização in vitro.
Esforços para projetar gametas similarmente funcionais em humanos produziram células parecidas com PGC's, mas com tal baixa eficiência — taxa de sucesso em transformar células-tronco em gametas — que era difícil para outros tentarem expandir o trabalho. Esforços anteriores também demandavam a introdução de genes que poderiam tornar as células inúteis para o ambiente clínico.
Agora uma equipe liderada por Azim Surani, da Universidade de Cambridge, Reino Unido, e Jacob Hanna, do Instituto Weizmann de Ciência em Rehovot, Israel, replicou a parte in vitro — a “primeira metade”, diz Hanna — dos esforços de Saitou em humanos.
Alta eficiência
A chave para o sucesso dos biólogos foi encontrar o ponto de partida correto. Uma grande dificuldade em repetir o feito em humanos era o fato de que as células-tronco de camundongos e as de humanos são fundamentalmente diferentes. Células-tronco de camundongos são ‘ingênuas’ — fáceis de influenciar para qualquer trajetória de diferenciação — enquanto células-tronco humanas são ‘preparadas’ de uma forma que as torna menos adaptáveis.
Mas Hanna percebeu que essas diferenças poderiam ser superadas por ajustes nas células, como ele e seus colaboradores relataram em 2013.³ Ele e sua equipe desenvolveram um modo de fazer células-tronco humanas que eram ingênuas como as dos roedores. “Na primeira vez que usamos aquelas células com o protocolo de Saitou — bum! Conseguimos PGC's com alta eficiência”, diz ele.
Trabalhando juntos, Surani e Hanna conseguiram usar células-tronco embrionárias e células iPS, tanto de homens quanto de mulheres, para fazer células precursoras de gametas com 25-40% de eficiência.
“É estimulante que os laboratórios de Surani e Hanna tenham encontrado uma forma de gerar células da linha germinativa com a mais alta eficiência já relatada”, diz Amander Clark, uma especialista em biologia reprodutiva na Universidade da Califórnia, Los Angeles.
As células têm muitas das características de células germinativas primordiais. Em particular, seu padrão ‘epigenético’ — [o padrão de] modificações químicas aos cromossomos que afetam a expressão gênica — era similar aos de células germinativas primordiais. A equipe comparou marcadores protéicos em PGC's artificiais com os de PGC's reais coletadas de fetos abortados e descobriu que eram muito semelhantes.
“São tão similares às PGC's humanas quanto as PGC's [artificiais] de Saitou são às PGC's reais de camundongo”, diz Hanna.
Saitou diz que os insights sobre mecanismos oferecidos pelo artigo provavelmente vão estimular os esforços para entender mais a fundo e controlar esse processo. Particulamente em humanos, uma proteína chamada SOX17 parece ter um papel-chave que em camundongos é desempenhado por uma proteína diferente chamada Sox2.
Saitou, que também está trabalhando para desenvolver PGC's humanas em placa, chama a descoberta de “interessante” e diz que, no geral, o processo de criar tais células “é muito mais claramente definido comparado ao trabalho anterior, mais ambíguo, e portanto será um bom fundamento para investigações futuras”. Clark concorda: “É um insight mecanístico especial sobre o desenvolvimento da linha germinativa humana que torna este artigo singular”, diz ela.
Muitas incógnitas
Em camundongos, o próximo passo é introduzir as PGC's projetadas em testículos ou ovários, para completar a ‘segunda metade’ do processo de Saitou, seu desenvolvimento em espermatozoides e ovócitos funcionais.
Mas Hanna diz que ele e seus colaboradores “não estão prontos para tentar isso” em humanos, e outros concordam que há ainda muitas incógnitas para introduzir as PGC's artificiais em humanos.
Ele diz que os cientistas estão também considerando injetar as PGC's artificiais humanas em testículos ou ovários de camundongos e outros animais, ou tentar o experimento como um todo em primatas não-humanos. Ele diz que os esforços contínuos de Saitou e outros para completar o processo do desenvolvimento de espermatozoides e ovócitos de camundongos in vitro poderia levar a uma receita que pode ser adaptada para humanos.
“Ainda estou organizando meus pensamentos. Veremos depois que o artigo for publicado o que a comunidade [científica] pensará”, diz Hanna.
Clark diz que reguladores devem dar caminho para os experimentos humanos que serão necessários para levar a tecnologia para as clínicas e potencialmente permitir que alguns homens e mulheres estéreis tenham filhos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lei proíbe o financiamento federal da criação de embriões humanos para propósitos de pesquisa, algo que seria necessário para testar a nova tecnologia. As restrições “precisam ser revogadas e substituídas por regras universais sobre como fazer essa pesquisa de forma ética e segura”, diz ela.
Em princípio, o processo poderia até mesmo ser usado para gerar óvulos do corpo de um homem. Esses poderiam ser fertilizados in vitro pelo espermatozoide de outro homem e o embrião resultante poderia então ser implantado numa mãe substituta — permitindo a dois homens ter um filho biológico juntos. Mas as dificuldades técnicas seriam formidáveis: em particular, homens não têm ovários nos quais as células precursoras poderiam ter a chance de maturar em óvulos. Além disso, a ideia com certeza enfrentaria polêmica.
“É muito importante enfatizar que enquanto esse cenário poderia ser tecnicamente possível e factível, é remoto neste estágio [da pesquisa] e muitos desafios precisam ser superados”, diz Hanna. Permitir que duas mulheres tenham um filho biológico juntas parece ainda mais remoto, acrescentam os autores, porque apenas homens têm o cromossomo Y, que é essencial para a produção de espermatozoides.
[N. do T.: utilizei alternativamente "óvulo" e "ovócito" como tradução para "egg". A convenção é que o gameta feminino antes da fecundação seja chamado de "ovócito (II)".]