O antifilosófico ataque à "meritocracia" e a importância da filosofia
Não adianta estar munido de dados "científicos" se há falta de clareza e bom argumento
Por que a filosofia é importante? Porque só ela pode te imunizar contra argumento ruim fantasiado de ciência. Dou dois exemplos.
Assisti hoje a um vídeo de um sueco contra a “meritocracia”. O cara usa gráficos maravilhosos e entrevista em Malmo o autor de um livro sobre a “ilusão” da meritocracia.
O vídeo é rico em dados e eu conheço alguns dos pesquisadores citados, como o historiador econômico Gregory Clark, que examinou a pouca mobilidade social de sobrenomes no Reino Unido por mil anos e como essa pouca mobilidade está ligada à genética há no mínimo quatro séculos. Escrevi a respeito aqui:
Tudo muito bom. Exceto pelas premissas falsas, como apontei num comentário lá. São elas:
Premissa falsa 1. Que a economia seria um jogo de soma zero. É a velha sugestão marxista de que se uns poucos estão muito ricos, ou permanecem ricos, é porque tomaram o que têm de outros tantos, o que seria injusto. A resposta mais básica a isso é: riqueza pode ser criada. Não só pode, como é criada o tempo todo. Ao mesmo tempo, o valor econômico das coisas é subjetivo. Quando você colhe jabuticabas do pé e faz um licor de jabuticaba, poderá cobrar mais pelo licor do que poderia pelas jabuticabas frescas, a depender de onde você está: se está num lugar em que as pessoas valorizam subjetivamente mais o licor que a fruta. E não, não foi o "trabalho" investido que agregou valor ao licor, foi o maior desejo subjetivo dos clientes de entregarem mais do dinheiro deles pelo licor. Se a riqueza pode ser criada, parte da maior riqueza dos mais ricos pode ter sido conjurada por eles próprios, não tomada de ninguém. Assim como Steve Jobs conjurou um iPhone do plástico e do silício.
Premissa falsa 2. Que a desigualdade é imoral em si mesma. Aí faço minha pergunta retórica de sempre: se centenas de milhões de pessoas têm interesse subjetivo em ler os livros da série Harry Potter ou assistir aos filmes, ao ponto de dar seu dinheiro para a autora J. K. Rowling, onde está a imoralidade nisso? A imoralidade nisso não existe. Alguém se importa que Mark Zuckerberg tem várias vezes a fortuna da Gisele Bundchen? Não. Ninguém fica indignado com essa desigualdade material. Logo, é falso que sua preocupação seja a desigualdade. Sua preocupação vem de duas coisas, uma feia e outra bonita: a feia é a inveja de rico, uma inveja maliciosa que não quer imitar quem está bem, mas derrubá-lo. A bonita é a compaixão pelos pobres. Mas a compaixão existe porque certo nível de pobreza objetiva (não pobreza relativa, criada para reforçar a tese falsa da imoralidade inevitável da desigualdade) causa sofrimento pela privação de alimento, teto, saúde, vida. Logo, o problema está na privação, não na desigualdade. É uma distinção importantíssima que os igualitaristas se esforçam em equivocar, apagar, turvar, de propósito ou não. E é feita pelo filósofo Harry Frankfurt no livro "On Inequality".
Premissa falsa 3. Que têm alternativa à hierarquia baseada em competência (“meritocracia” é termo pejorativo criado por um socialista inglês), ainda que seja apenas um horizonte moral não concretizado na sociedade. Não têm alternativa. Não uma alternativa boa. O que existe são as ruins: compadrio, nepotismo, força. Tanto que no vídeo o sueco usa o nepotismo que existe em famílias como os Skarsgard na dramaturgia e os Bush na política como prova de que não há meritocracia. O que me leva à próxima premissa falsa.
Premissa falsa 4. Que a genética ou a cultura familiar jamais pode ser explicação para o sucesso de ninguém. Ora, talvez o patriarca dos Skarsgard, Stellan (que arrasa em seu papel na série Andor), compartilhe seu sucesso com filhos como Alexander Skarsgard (True Blood, Succession) não por causa do nepotismo, mas porque seu talento foi transmitido ao menos em parte pelos genes e pelos ensinamentos dentro da própria família Skarsgard. Como mostra Thomas Sowell, em vários lugares pelo mundo pessoas que ficaram ricas fazendo cervejarias têm ascendência alemã, da China ao Brasil. Então há uma desigualdade nisso: uma sobre-representação de germânicos na produção cervejeira. Sowell explica isso com cultura, não genes. Onde está a parte errada dessa desigualdade? Não existe.
Esse tipo de exame de premissas não é exclusivo da filosofia, mas é o presente da atividade filosófica para as outras atividades intelectuais que dela derivam. Como dizia o filósofo Daniel Dennett: não existe ciência sem filosofia, só ciência cuja bagagem não foi revistada.
Meu segundo exemplo é um texto escrito por um competente e politicamente incorreto cientista social. O texto defende que a ideia de que a homossexualidade não é uma doença foi uma invenção insincera do politicamente correto, do woke. Ele apresenta vários dados, correlações da homossexualidade com transtornos psiquiátricos, etc. Só não faz uma coisa: examinar o que queremos dizer com o termo "doença". Não analisa o conceito. Presume que ninguém tem dúvida a esse respeito. Acaba que, na ausência de uma boa definição ou ao menos caracterização do que significa algo ser uma doença, a noção vaga de doença usada transformaria ser mulher ou ser homem em doença, já que existem correlações de cada sexo com transtornos psiquiátricos mais comuns entre mulheres ou entre homens.
Aristóteles já matou a charada da posição anti-intelectual segundo a qual filosofar é inútil. Se não há que filosofar, há que filosofar. Logo, há que filosofar. Essa é a versão condensada. A versão mais longa: se você defende que filosofar é uma atividade inútil, você só conseguirá mostrar isso pela via da argumentação e da clareza. Como argumentação e clareza são as ferramentas da filosofia, você já presume que filosofar é importante ao tentar provar que filosofar é inútil. Logo, filosofar é importante.
Perfeito.