No fim, a comédia nos salvará: falando dos meus favoritos
Humor: suas origens, suas ideias, minhas recomendações.
Das muitas coisas que nós humanos fazemos, o humor é uma das mais estranhas e enigmáticas. Ele envolve uma resposta em certa medida involuntária: embora tenhamos algum controle sobre o riso, há coisas tão engraçadas que nos fazem explodir na gargalhada, às vezes em situações sociais inapropriadas. Uma das coisas que ligam essa resposta involuntária, estranhamente, são as cócegas, ao ponto de muitos adultos detestarem. Um dos estudos que eu mais gosto em evolução humana nem tocou no DNA: foi um estudo que investigou os risos que filhotinhos humanos e de outros primatas emitem quando são alvos de cócegas, e descobriu que esse padrão de vocalização segue de perto o parentesco entre essas espécies já conhecido pelo DNA.
Em The Elephant in the Brain, Robin Hanson e Kevin Simler popularizam uma explicação evolutiva para o humor: ele sinaliza que o modo da brincadeira está ligado. O modo da brincadeira é quase universal entre mamíferos, e também parece estar presente em aves e possivelmente outros grupos. Trata-se de simular em condições confortáveis e seguras habilidades que serão importantes depois para a sobrevivência. Filhotes de cães, por exemplo, modulam a força da mordida para não ferir. Simulam entre si a caça que seu instinto pede na vida adulta. O modo de brincadeira é social: nós rimos sozinhos, mas rimos muito mais quando estamos acompanhados. É como se sinalizássemos “está tudo bem comigo, está tudo bem contigo, estamos todos bem”.
É verdade que o humor pode ser uma arma: quando se usa o modo de brincadeira como camuflagem para humilhações e demonstrações de poder. Além disso, há o Schadenfreude, o prazer em ver alguém se dar mal, que é egoísta: a segurança está em pensar que “ao menos não foi comigo”. Porém, nesses casos de humor moralmente questionável, é raro que grupos grandes participem, e é raro que as pessoas continuem sentindo prazer ao ver outras sofrendo por ferimentos sérios, tortura e morte. Como discute o filósofo David Benatar, o humor também é um remédio. Quando um homem velho diz que, ao se espreguiçar de manhã ao acordar, checa se os braços não bateram na madeira do caixão, o efeito é trazer para um ambiente mental confortável o desconforto de pensar na morte, tendo o mesmo tipo de efeito terapêutico que tem a exposição de pessoas com aracnofobia a aranhas de plástico.
Há diferentes tipos de piadas e, na tarefa anti-humorística de dissecá-las, há propostas para o que funciona. O elemento da surpresa parece ser comum: tanto a surpresa de “não acredito que ele disse isso”, quanto a surpresa de “não acredito que o Pernalonga parou de cair no precipício porque tomou um tônico antigravidade para lebres”. Talvez seja mais do fenômeno descrito acima: surpresas na natureza pode ser ameaças reais, como um predador saltando do arbusto. Uma surpresa que se revela inofensiva, portanto, liga a sinalização de que “está tudo bem”.
Diz-se que grandes comediantes têm vidas atribuladas, sofridas. Jerry Seinfeld declara-se uma exceção a isso, e desenvolveu um humor observacional bem particular. Acho bons alguns episódios da sua famosa sitcom Seinfeld, como o episódio em que a Elaine revela ser uma péssima dançarina. (Perceba: rir de alguém sem noção do ridículo que está passando pode ser uma forma de Schadenfreude.) Mas Seinfeld não é meu favorito.
Na minha própria experiência, houve uma concomitância entre o desenvolvimento do meu humor (não que eu seja comediante) e minha recuperação de uma fase depressiva. Eu usava este humor para tentar mostrar o quanto o identitarismo é ridículo. Até criei uma personagem para isso, a Betine Bombom. Então vejo plausibilidade na ideia de que comediantes de excelência não tiveram vidas confortáveis.
Quero recomendar os produtores de humor que eu mais aprecio. Eu conheço quase todas as animações para adultos. A animação, por ser uma imitação pobre da realidade, já realça o efeito de ambiente seguro que ajuda o humor. Talvez não seja coincidência que a melhor das animações de humor já feitas, South Park, seja também, originalmente, a mais tosca. Eric Cartman, o mais amado e mais malvado dos personagens, é em si uma “aranha de plástico” para várias das fobias sociais reais: antissemitismo, homofobia, racismo, até sadismo assassino. Os melhores episódios, na minha opinião, são aqueles em que a maldade do Cartman contrasta com a inocência do Butters. O talento dos criadores, Matt Stone e Trey Parker, vai além da série: tive o prazer de assistir no teatro o musical deles, The Book of Mormon, e deve ter sido uma das ocasiões em que mais ri na vida.
Porém, creio que a produção mais pura do humor está no stand-up. É raro que filmes de comédia sejam realmente engraçados, uma das poucas excepções é Airplane!. A habilidade envolvida em um bom stand-up é admirável porque, afinal de contas, as condições são as mínimas possíveis. Sou fã do George Carlin e o considero um mestre da arte. Sua “lista de pessoas que devem ser mortas” é genial. Porém, George Carlin pode cansar pelo cinismo e dar saudade de algo mais inocente. Mas Carlin não era só alguém que queria chocar: era extremamente habilidoso com a língua, e fez também humor observacional com expressões do cotidiano.
Jim Gaffigan é um bom representante do humor mais “limpo”. Na indústria do stand-up, os mais limpos são invejados pelos mais “sujos”, pois é muito mais difícil fazer boas piadas ou rotinas ou histórias sem a muleta da sujeira. Lenny Bruce, herói da liberdade de expressão do humor e precursor de George Carlin, hoje soa um pouco datado, mas foi importante estabelecer que a “sujeira” é um instrumento que pode ser usado, sem interferência da censura, mas que é melhor ser usado com maestria e moderação.
Dave Chappelle não é “limpo”, mas seu último especial na Netflix, The Closer, me fez chorar e rir. É um mestre em contar histórias, e, para quem o conhece desde o ousado Chappelle Show, está envelhecendo como o vinho. Sua reação ao identitarismo é acertada, profunda, reflexiva. Infelizmente ele abre concessões demais, a meu ver, ao identitarismo de raça, mas isso é uma doença geral de americanos, não particular dele.
Norm Macdonald foi a antítese que eu encontrei ao cinismo do George Carlin. Norm era um canadense que sempre quis fazer stand-up, ficou famoso no Saturday Night Live, mas é muito mais que isso. Na opinião dele, o stand-up canadense, ao menos de sua geração, é superior ao americano porque, enquanto os americanos costumam ver o stand-up como trampolim para coisas maiores como as sitcoms da TV, os canadenses não tinham essa opção e planejavam passar uma carreira só com a voz e o microfone, lapidando sua arte. Pode ser mero ufanismo canadense do Norm, mas ele próprio é um exemplo do que diz. Falecido aos meros 61 anos no mês passado, Norm, cuja tragédia era o vício em jogos que o levou duas vezes à bancarrota (o que ele usa surpreendentemente pouco em sua obra), deixou stand-ups da mais alta qualidade em que trata de temas como morte, câncer, vítimas de estupro do Bill Cosby, várias entrevistas com outros comediantes em que ele geralmente brilha mais que o convidado sem esforço, e um livro que me fez gargalhar mais de cinco vezes, Based on a True Story.
Depois de muitos anos como fã do Carlin, o que deve ter acontecido entre outros motivos porque Carlin era ateu como eu, hoje, confesso, sou mais fã do cristão Norm Macdonald. Ele não era só um mestre de sua arte: ele também era um filósofo dela. Em entrevista com Larry King e em outras ocasiões em que comentou a decadência do humor político durante a era Trump, Norm fez uma observação precisa: o aplauso é voluntário, o riso é involuntário. Quando a comédia provoca aplausos da plateia mais que risos, ela está se transformando em outra coisa. Ele não queria aplausos, ele queria risos. E conseguia. Outra coisa que Norm tem e George não tem é uma visão de mundo sem niilismo. Leitor assíduo da literatura russa, Norm reconhecia o absurdo da vida. Às vezes, ele fingia niilismo só para irritar entrevistadores do rádio: “o sexo é só uma atividade repetitiva, só uma função fisiológica, não faço mais”, “eu disse pro meu filho que estudar não serve para nada”. Isso Carlin não conseguiria fazer, pois ele mais concorda do que discorda disso — e, politicamente, Carlin soava como um adolescente falando mal “do sistema”, de forma vaga, e com sinais de desejo de queda do capitalismo. Já Norm Macdonald, em seu livro hilariante, diz, pensando na própria vida, “Eu tive sorte.”
O riso tem a característica da apreciação de filmes de horror e do heavy metal: ele é capaz de retratar o pior que poderia nos acontecer de uma forma que não dói, como a mordida moderada de um cãozinho. Quando o pior vem, estamos mais preparados, graças a ele, e ele é um dos nossos analgésicos mais potentes. Não há inteligência, não há humanidade, sem o riso. Que bom que ele ainda está aqui: temos sorte.
Atualização 29/10/2021
Senti que minha memória pecou um pouco quando escrevi o texto. Então, vasculhando-a mais, eis mais recomendações, com comentários:
Joan Rivers — “Suja” e maravilhosa. Como o Norm, tem livros engraçadíssimos. Extremamente franca a respeito do suicídio do marido. Um exemplo de resiliência e muito da biografia dela inspirou a série The Marvelous Mrs. Maisel na Amazon Prime.
Ricky Gervais — Melhor representante em atividade da herança riquíssima da comédia britânica. Monty Python é o expoente disso, brilhando mais nos filmes que nas esquetes, na minha opinião. Gervais tem uma tese interessante: ele diz que nenhum comediante será melhor para fazer um indivíduo rir do que seus amigos mais próximos. Chamemos essa tese de “superioridade da piada interna”. Ele também faz as vezes de autor dramático, tocando em temas como a morte e a deficiência mental, mas eu prefiro o stand-up, e, mais que o stand-up, o programa animado da HBO Ricky Gervais Show, em que quem brilha nem é ele, mas seu amigo Karl Pilkington. O programa foi feito com os melhores momentos de um podcast com Gervais, Pilkington e Stephen Merchant. Ah, claro, Gervais também deu uma surra na elite de Hollywood como apresentador do Globo de Ouro em 2020 e vale a pena cada segundo.
Seth MacFarlane e Matt Groening — Esses são os mestres da animação: The Simpsons, Futurama, Family Guy, American Dad. Há momentos excelentes nessas animações. Infelizmente, as que ainda existem decaíram muito na qualidade do humor. MacFarlane nos deu um grande presente: a melhor versão atual de Star Trek, sem esse nome: The Orville.
E os brasileiros? Não quis esnobar meu país, reconheço a criatividade e talento de figuras como Chico Anysio e Tom Cavalcante, a boa escrita cômica em TV Pirata e Os Normais, e eu apreciei bastante os talentos que surgiram por volta de 2009 na MTV, além de seu clássico Hermes & Renato (para mim atingiram o pico com Tela Class, uma série de dublagens jocosas de filmes antigos). Também acho positiva a novíssima onda de stand-up dos últimos anos. Só que eu penso que, em conjunto, a nossa produção ainda tem bastante a melhorar e ainda não temos o nosso George Carlin. Claro, levem em conta que meu conhecimento é limitado e talvez eu simplesmente não tenha visto o que há de melhor por aqui.