Léo Lins tem razão: humor alivia dor. Por isso, até estupradas buscam piadas de estupro
Algumas pessoas parecem incapazes de entender por que outras gostam de humor negro, heavy metal e filme de terror
Já reagi ao caso da condenação do humorista Léo Lins à prisão com uma análise da sentença junto com um pequeno ensaio sobre o humor, com um exame das decisões anteriores da juíza Barbara Iseppi e, nas redes sociais, ajudando a mostrar que famosas obras de humor precisariam ser censuradas caso o entendimento da magistrada prevaleça.
Agora, nos debrucemos sobre uma frase do próprio Lins sobre uma das funções do humor: “O humor alivia a dor, seja ela qual for”.
Claro, Lins não está recomendando que troquemos a dipirona ou a morfina por piadas do tipo “sua mãe é tão pobre que, quando a encontram andando com um chinelo só e perguntam se ela perdeu o outro, ela diz ‘não, eu encontrei um’” (peguei do South Park).
O humor é a dipirona para as dores da alma. O comediante brasileiro não está sozinho. Concordam com ele filósofos como o sul-africano David Benatar e o britânico Piers Benn.
“Pense, por exemplo, no velho que diz ‘quando acordo de manhã, a primeira coisa que eu faço é esticar os braços. Se não bater em madeira, eu levanto’. Tal gracejo não indica que o velho considera sua morte um assunto trivial. Em vez disso, é sua ansiedade sobre a morte (e enterro) que dá origem a seu humor. Enquanto este é um caso de humor autodirecionado, não há razão para pensar que algo similar não ocorra às vezes quando as pessoas brincam sobre as tragédias que acometem outros. Tais tragédias podem nos causar ansiedade, e o humor é uma forma de lidarmos com elas.”
— David Benatar. Journal of Practical Ethics, 2014.
“As pessoas muitas vezes fazem piada a respeito do sofrimento e da morte precisamente porque os levam a sério. O ‘humor mórbido’, ao que parece, não é incomum entre médicos e agentes funerários.”
— Piers Benn. The Philosophy of Comedy, 2025.
Um exemplo dramático de busca do humor como analgésico
Em 2018, a revista feminina Elle noticiou que no fim de semana de 28 e 29 de abril daquele ano “sobreviventes do estupro reafirmam seu direito de contar piada sobre a violência sexual”, em um evento de Nova York.
O nome do evento era “Piadas de estupro por sobreviventes: uma noite de comédia e catarse”. A organizadora era a escritora, diretora e produtora Kelly Bachman. Mais de uma dúzia de performances aconteceram.
“É papel de um comediante comentar notícias dolorosas e ajudar as pessoas a encontrar uma forma de rir disso e pensar nisso”, disse Bachman, ela própria uma vítima de estupro.
“É um público com bastante consentimento, ironicamente”, brincou uma das humoristas convidadas, Brittany Brave. Ela abriu sua performance assim: “Meu nome é Brittany e eu sei que esse nome faz você querer me levar para um shopping ou socar a minha cara. Se você for meu ex-namorado, você consegue fazer as duas coisas”.
Essa piada é chocante? Não, ela disse. “Chocante é que isso de fato aconteceu comigo e meu namorado de fato me socou na cara. A piada não é o que é chocante”.
Brave disse que “a comédia é só tragédia”, sem a ressalva comum “mais tempo”. A referência original é a frase do ator e personalidade da TV americana Steve Allen, na revista Cosmopolitan em 1957: “A tragédia mais o tempo é igual à comédia”.
“Não precisei de tempo… Na verdade, foi como um veneno que eu precisava vomitar a jato para fora de mim”, refletiu a humorista.
Outra participante da noite de piadas foi Adrienne Truscott. Na época, ela já tinha um show inteiro com o título “Adrienne Truscott está pedindo por isso: o estupro de uma mulher sobre a comédia estrelando sua vagina e pouca coisa além disso”. Foi proposital a inversão “o estupro de uma mulher sobre a comédia” em vez de “uma comédia de uma mulher sobre o estupro”.
Só uma minoria de malucas com mau gosto? Longe disso. A procura foi grande, disse Bachman. O preço do ingresso era dez dólares.
Não foi a primeira vez que algo assim aconteceu. Dois anos antes, a canadense Heather Jordan Ross, estuprada em 2014, vendeu todos os ingressos para seu show em Vancouver, “O estupro é real e está em todo lugar”. Ela também não estava sozinha, seis outras estupradas fizeram seu stand-up sobre sua vitimização no palco. “Queria fazer piada disso”, disse Ross à revista Vice. “Não sabia como falar disso por um tempo e estava passando por uma situação ruim — não conseguia montar a narrativa, mas sempre usei o humor para enfrentar as situações. Então, para mim não era um grande salto contar piada a respeito, para ser honesta”.
No mesmo ano da noite em Nova York, a comediante Cameron Esposito fez um tour com seu especial de título “Piadas de estupro”. Também vítima, ela contou uma das piadas em um podcast da revista Vulture.
“A sobrevivente de estupro é mostrada na TV e nos filmes sempre do mesmo jeito: ela é violentada, e depois se torna muito boa com espadas. Não foi minha experiência. Continuei com o mesmo nível de habilidade com espadas: expert.”
Ninguém está dizendo que fazer piada é terapêutico para todas as estupradas. Mas os exemplos acima mostram que claramente é terapêutico para algumas delas, e isso é razão suficiente para condenar a censura ao humor com temas sensíveis como este.
Soldados e vítimas do Holocausto bricando com a morte
Outra fonte inesgotável de humor mórbido é a guerra. O correspondente de guerra britânico Phillip Gibbs escreveu que, na Primeira Guerra, “era impressionante ver como as pessoas riam de histórias de horror e brutalidade — eu incluso. Era o riso de mortais diante da pegadinha que foi feita com eles por um destino irônico. Eles tinham aprendido que o objetivo da vida era alcançar a beleza e o amor. Agora, aquele ideal tinha se partido como um vaso de porcelana atirado ao chão. O contraste entre isto e aquilo era devastador”.
Uma das músicas cantadas nas trincheiras tinha a letra “Estamos aqui porque estamos aqui”. Soldados faziam piada dos corpos despedaçados, pegando uma cabeça do chão e chamando de “a cara feia do Bill”, por exemplo.
Na guerra do Iraque, soldados americanos lembram uma vez em que um telhado fino os protegeu de uma bomba e todos caíram na gargalhada. Outro confessou que fez piada do peso de um colega enquanto corriam do ponto de impacto de um míssil. Todos riram, mas só depois de ver que ninguém tinha morrido. Porque é uma das funções do humor sinalizar que todos estão bem.
Vítimas do Holocausto também era piadistas. Os judeus, afinal, são uma jazida preciosa de bons humoristas. Em campos de concentração como Westerbork e Theresienstadt, montavam até shows em palco. No gueto de Varsóvia, os judeus enterraram listas de piadas. Mel Brooks, respeitadíssimo comediante judeu de Hollywood, disse em um documentário de 2016 que sua missão de vida é fazer as pessoas rirem de Hitler.
“Os comediantes são a consciência do povo”, afirmou Brooks, “e a eles é permitida uma ampla gama de atividade em toda direção. Os comediantes precisam nos dizer quem somos, onde estamos, mesmo que façam isso com mau gosto”.
Na autobiografia “Night”, Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto, reconta uma piada que surgiu do campo de concentração de Treblinka: um judeu que estava passando fome disse para seu amigo glutão “Ei, Moshe, não coma demais — pense na gente, que vai ter que te carregar”.
Pacientes com câncer também fazem piada da situação. “Obrigada pelas flores. Espero que elas morram antes de mim”, brincou Nina Riggs, como ela reconta em um livro de memórias sobre sobreviver à doença.
Também eram espirituosos os pobres trabalhadores que receberam doses letais de radiação ao limpar a usina de Chernobyl. Uma piada popular entre eles era sobre os robôs usados no local. “Soldado Ivanov, em duas horas você pode descer e usar sua pausa para fumar”, teria dito a chefia para um dos robôs, tratando-o como um dos humanos descartáveis.
Mas olhando a morte nos olhos, ninguém brinca com isso, certo? Errado. Em 2015, toda a tripulação do navio de carga El Faro morreu ao se encontrar com o furacão Joaquin. A Associated Press teve acesso à caixa preta. “Estamos entrando na tempestade. Oba!”, disse uma vítima. “I’m a goner” (algo como “fui” ou “estou frito”), disse outra.
Conclusão
É verdade que o humor pode ser usado para o mal, claro. Como pode ser usado assim qualquer outro comportamento humano, inclusive o ato de cuidar — basta ver o caso da síndrome de Münchhausen por procuração, em que o “cuidador” literalmente adoece alguém, sem seu conhecimento, para poder cuidar e atrair a compaixão alheia. Essa síndrome é uma boa metáfora para a mentalidade woke de quem quer proibir piadas “contra” determinados grupos, muitas vezes à revelia deles próprios.
É normal ter uma personalidade sensível e avessa a coisas como humor negro, heavy metal e obras audiovisuais de terror. Ver cabeças sendo esmagadas na série The Walking Dead certamente não é o gosto de todos.
O que não é normal é presumir que a sua experiência é idêntica à dos outros e, assim, impor com autoritarismo os seus gostos sobre os outros, querendo banir piadas e outras expressões de arte que são parte da experiência humana.
O autoritarismo contra o humor negro (e eu chamo de “humor negro” de propósito, pois sei que os contrários costumam ser também os tolos que inventam que este “negro” é uma referência racial) revela pobreza de imaginação, incapacidade de entender cabeças diferentes da própria, e falta de experiência de mundo.
Talvez este seja um dos poucos casos em que a minha recomendação é o bullying simbólico corretivo. Uma pessoa que quer proibir piadas de “mau gosto” merece ser zoada até desistir.
Entre politicamente corretos e incorretos: ética do humor
“Assim como piadas que ativam estereótipos não parecem ser sempre uma expressão de defeito naqueles que apreciam essas piadas, piadas sobre a feiúra ou a deficiência, ou sobre violência, estupro ou morte, não parecem vir sempre da insensibilidade ou crueldade na pessoa que conta ou que aprecia tais piadas. Tais vícios podem explicar por que algumas pes…
Fantástico Eli!! Depois veja a zoeira que o P. Figueiredo fez em homenagem ao Léo Lins. Sobre a juíza e seu “aTESTAdo” de incompetência 😂😂😂😂
A juiza que condenou o comediante foi orientada na faculdade de Direito por Mauro Iasi, o comunista que declarou ser fã do paredon.