Feminismo igualitário vs. Feminismo sectário
Dois tipos de negacionistas do segundo sexismo, por David Benatar*
Argumentos mostrando que há um segundo sexismo levantam objeções de duas principais direções. Mais abundantes, ao menos dentro da academia, são objeções de algumas (mas não todas) feministas. Do outro lado vêm objeções de alguns conservadores. Em cada caso, quem faz a objeção nega que existe tal coisa de segundo sexismo ou que é tão comum quanto eu defenderei que é.
Considere, primeiro, negacionistas do segundo sexismo das fileiras feministas. Feministas, evidentemente, não são um grupo monolítico. Há muitas formas de categorizar variedades de feminista, mas para meus propósitos somente uma distinção é crucial. É a distinção entre aquelas feministas que são motivadas por e interessadas em igualdade dos sexos e aquelas feministas cuja principal preocupação é a promoção das mulheres e meninas. Algumas feministas - aquelas do segundo tipo - provavelmente dirão que essa é uma distinção sem diferença. Dirão que a igualdade dos sexos é promovida pelo avanço dos interesses das pessoas do sexo feminino**, e vice-versa. Estão (apenas) parcialmente corretas. Promover a igualdade entre os sexos de fato frequentemente coincide com a promoção dos interesses das mulheres. É assim quando as mulheres são injustamente discriminadas. Entretanto, porque os homens, como defenderei, são às vezes vítimas de discriminação injusta, a promoção da igualdade de gêneros vai demandar às vezes a promoção de interesses de homens em vez de interesses de mulheres.
Podemos nos referir às feministas que são fundamentalmente preocupadas com a igualdade dos sexos como feministas igualitárias, e àquelas feministas que estão basicamente preocupadas apenas com a promoção dos interesses de mulheres e meninas como feministas partidárias***. As últimas são o equivalente feminista daqueles ativistas dos direitos dos homens [masculinistas] que estão interessados apenas em promover os interesses e proteger os direitos de pessoas do sexo masculino. Feministas corretamente criticam essa posição, mas feministas partidárias não percebem que a profissão míope dos interesses de um sexo que é característica de tais (mas não outros) defensores de direitos dos homens é similar à sua própria posição. Essa crítica não se aplica a feministas igualitárias. Nada do que eu digo deve ser hostil ao feminismo igualitário. Na verdade, eu endosso essa forma de feminismo. Defensores dessa posição reconhecerão que se opor ao segundo sexismo é uma parte do projeto geral de se opor ao sexismo e promover a equidade de gêneros. O que eu direi será antagônico apenas ao feminismo partidário.
Ao fazer a distinção entre feministas igualitárias e partidárias, eu não aleguei que feministas igualitárias devem reconhecer que existe um segundo sexismo. Obviamente, o compromisso com a igualdade dos sexos não implica em crer que homens são vítimas de alguma discriminação injusta. O objetivo deste livro é defender que pessoas do sexo masculino são, de fato, vítimas de sexismo. O que estou argumentando agora é que não há nada nessa alegação que seja inconsistente com o feminismo igualitário.
Ao distinguir feminismo igualitário de feminismo partidário, eu não provei que há feministas partidárias. A distinção também não prova que há feministas igualitárias, mas é a categoria de feministas partidárias que algumas feministas poderiam alegar que é vazia. Pretendo mostrar em muitos pontos ao longo desse livro que há, de fato, feministas desse tipo. Há algumas, mas não muitas, feministas que explicitamente esposam o que eu chamei de feminismo partidário. Muito mais comumente, entretanto, muitos daqueles que professam o feminismo igualitário escorregam para uma forma partidária de feminismo. Interpretam as evidências como provando que pessoas do sexo feminino são vítimas de discriminação mesmo quando não são - e mesmo quando são na verdade pessoas do sexo masculino que são as vítimas da discriminação. Também se engajam em racionalizações para atingir a conclusão em qualquer exemplo em particular de que são interesses femininos que devem prevalecer.
Não pretendo identificar feministas específicas como igualitárias. Uma razão para isso é que é difícil a este ponto determinar quem são as feministas igualitárias reais. Quase todas as feministas escrevendo sobre a discriminação por sexo trataram da discriminação contra pessoas do sexo feminino. É difícil saber se qualquer feminista específica ignorou a discriminação contra pessoas do sexo masculino simplesmente porque ela ou ele não estava ciente do problema. O que acontecerá quando forem informadas ainda está para ser visto. Uma vez que sua atenção for chamada, suas opções (amplamente definidas) parecem ser essas:
(1) Podem aceitar que há alguma discriminação errada contra pessoas do sexo masculino (e se juntarem a mim em opor-se a ela).
(2) Podem fornecer bons argumentos sobre por que, ao contrário do que eu digo, pessoas masculinas não são vítimas de qualquer tipo de discriminação errada.
(3) Podem rejeitar a conclusão de que pessoas do sexo masculino são vítimas de discriminação errada mas falhar em fornecer boas razões para essa conclusão e, em vez disso, se engajar nas familiares racionalizações que discutirei mais tarde.
(4) Podem declarar que não estão interessadas na discriminação contra homens e meninos mesmo se ela existir.
As primeiras duas opções são compatíveis com o feminismo igualitário, enquanto as duas últimas ou sugerem (opção 3) ou declaram explicitamente (opção 4) o feminismo partidário. Em parte por essa razão, as pessoas na terceira categoria são propensas a dizer que estão, na verdade, na segunda. Não desejo prejulgar como pessoas em particular responderão. Porque muitas feministas que professam ser igualitárias escorregam para uma forma partidária de feminismo quando confrontadas com argumentos de que há um segundo sexismo, muitas vezes não se pode facilmente dizer (antecipadamente) quais daqueles que professam estar interessados na igualdade dos sexos de fato o estão.
Nem preciso identificar feministas igualitárias específicas (ou discutir seu trabalho enquanto feministas igualitárias) para amparar meu argumento. O feminismo igualitário é uma posição possível e uma posição que muitas pessoas professam. A questão sobre quem de fato ocupa esse espaço intelectual (e político) não é relevante para determinar se há um segundo sexismo. Nem é relevante para mostrar que o reconhecimento e a oposição ao segundo sexismo é compatível com a posição que chamei de "feminismo igualitário".
Como no caso das feministas, conservadores também não são de um único tipo. Alguns dos que chamam a si mesmos de "conservadores" podem não ter objeções às posições que defenderei. Isso porque alguém pode ser conservador num campo mas não em outro. O conservadorismo econômico, por exemplo, não implica em conservadorismo religioso. Os conservadores que protestarão contra meus argumentos serão mais provavelmente aqueles que endossam (o reforçamento dos) papeis de gênero e em consequência o tratamento diferenciado dos sexos ao qual eu me oponho. Arguirão que muitas das desvantagens que as pessoas do sexo masculino sofrem não são exemplos de sexismo, porque as pessoas do sexo masculino devem suportar esses fardos ou ao menos que não é injusto que tenham de suportá-los. Esses conservadores - a quem podemos chamar de conservadores de papeis de gênero - pensam a mesma coisa sobre vários fardos que mulheres suportam, o que faz deles aliados desleais para feministas partidárias que também negam que há um segundo sexismo. De fato, conservadores de papeis de gênero podem achar parte do que defenderei - especialmente contra feministas partidárias - bem agradável. Podem, por exemplo, concordar que há os dois pesos e duas medidas que eu demonstrarei que existem na posições das feministas partidárias.
Deve estar claro, entretanto, que minha posição não é conservadora sobre papeis de gênero. Enquanto poderia haver diferenças em média em algumas características psicológicas entre os sexos (discutirei de forma mais aprofundada no Capítulo 3), eu não penso que essas justifiquem todos os tratamentos diferenciais dos sexos que os conservadores de papeis de gênero endossam. Por eu pensar que o segundo sexismo deve ser condenado junto ao sexismo mais amplamente reconhecido, estou defendendo mudanças - fazer as coisas de forma diferente da que foram feitas historicamente. Isso não é ser conservador de forma alguma.
Ao defender a posição de que há um segundo sexismo, responderei a críticas de ambos feministas partidários e conservadores de papeis de gênero. Entretanto, meus argumentos se direcionarão mais comumente contra os primeiros. Isso não é porque sou mais contra sua posição, mas em vez disso porque é a posição mais comum na academia.
Não poderia enfatizar mais, no entanto, que eu não estou criticando todas as feministas. Descobri que esse fato é frequentemente esquecido (ou, em leituras menos generosas, ignorado) mesmo quando é dito claramente. Infelizmente, o partidarismo e outros excessos ideológicos do feminismo são generalizados e eu devotarei muita atenção a demonstrar os problemas em tais posições. Ao fazê-lo, entretanto, não devo ser interpretado como alguém que rejeita o feminismo na sua forma mais autêntica e igualitária.
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Notas da tradução
* David Benatar é professor de filosofia na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul. http://en.wikipedia.org/wiki/David_Benatar Este texto é uma seção do Capítulo 1 (Introdução) de seu livro Benatar, David. The second sexism: discrimination against men and boys. John Wiley & Sons, 2012. As notas foram ocultadas.
** Traduzi "females" como pessoas do sexo feminino. No inglês, a distinção entre sexo feminino/masculino e gênero feminino/masculino é facilitada pela possibilidade de usar os termos "female"/"male" e "feminine"/"masculine". Mas, no português, a tradução literal de "female" para "fêmea" e "male" para "macho" perde o sentido substancialmente, pois as pessoas associam essas palavras ou a outros animais, ou, no caso de "macho", o termo é usado para pessoas já com um sentido sexista de atribuição automática de virtudes ao gênero masculino.
*** "Partisan feminist" poderia ter outras traduções, como "feminista sectário" ou "feminista sequaz". Usei "sectário" no título da minha tradução, confesso, para atrair leitores e leitoras. Benatar, é claro, está sendo neutro em gênero quando se refere a feministas, graças à língua inglesa, o que é difícil de fazer em português sem apelar para acresção arriscada de palavras como "pessoas feministas". Optei por generalizar feministas no feminino, na maioria das vezes, por convenção. Lembrar que em todos os casos em que se diz "as feministas", há, inclusive na academia, homens envolvidos (mesmo que não gostem de chamar a si mesmos de feministas).
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