Doutrinação: um mal maior ainda
Tenho um incômodo e um temor. Me incomoda o modo prosélita como alguns ateus têm se comportado, e eu temo que o número de pessoas ateias que pensem que ser ateu vem antes de ser cético e científico cresça demais. Na verdade, quando li a última página de "Deus, um delírio" [The God Delusion] há quase três anos, a primeira coisa que pensei foi "este livro é ótimo, mas justamente por ser didático e simplificado pode dar para alguns a falsa impressão de que é suficiente, e essas pessoas que pensarem assim serão prosélitas".
Talvez seja inevitável que seja este o caso: sempre que algo consistente se torna mais difundido, haverá a leitura preguiçosa, servirá como fonte para proselitismo e para aquele defeito sutil que se costuma chamar de"self-righteousness" (um termo que resume aquela atitude arrogante de quem tem um excesso de confiança em si mesmo ao ponto de ser surdo para contra-argumentação).
Lamento parecer levemente melindroso, mas tenho motivos para essas reclamações.
Por exemplo, a revista Época, em agosto do ano passado, noticiou que
O filósofo argentino Alejandro Rozitchner defende uma educação ateísta a seus três filhos e diz já saber o que falar quando um deles lhe perguntar sobre Deus. "Vou dizer que é um personagem como o Buzz Lightyear ou o Woody do Toy Story."
Neste quesito, eu sou quase tão contra Rozitchner quanto sou contra Ratzinger.
Isso é doutrinação infantil e é ruim: gera crédulos, não céticos. Por quê?
Primeiramente porque as evidências não dizem terminantemente que Deus (o dos cristãos) é como Buzz Lightyear.
Buzz Lightyear foi uma entidade sabidamente inventada e proposta como ficção, enquanto deus, qualquer que seja, é proposto como pertencente à realidade. Avaliar a realidade cabe àqueles que a estudam. Minha conclusão é de que deuses são improváveis, tão evanescentemente improváveis que vivo minha vida na suposição de que não existem.
Este pai chamar suas crianças de ateuzinhos é tão adequado quanto chamá-las de humanistas seculares, de marxistas, ou de petistas: elas simplesmente não têm conhecimento e maturação mental para pertencer a nenhum desses rótulos.
Protestar contra a doutrinação de crianças, mesmo que seja doutrinação pelo meu ateísmo, é questão de honestidade intelectual.
Por mais ridículos e fantasiosos que sejam, os deuses fazem parte de hipóteses filosóficas dignas de apreciação. Imputar a crianças uma negação dessas entidades é sim doutriná-las. Um dogma negativo não deixa de ser um dogma.
Apresentar prontas suas próprias conclusões a crianças (que são seres volúveis e em maturação que acreditarão prontamente em qualquer coisa que digam os pais sem nenhum critério de rejeição), sem esperar que cresçam e sejam capazes de conhecer suas premissas e refazer a argumentação que você fez, não tem outro nome: é doutrinação.
Se nós ateus começarmos a doutrinar crianças, vamos agir exatamente como os porcos de George Orwell (no livro A Revolução dos Bichos): nos tornaremos exatamente aquilo que condenávamos.
O exercício do raciocínio e da argumentação não pode ser passado na forma de doutrinação, muito menos doutrinação infantil. Que validade tem uma opinião construída por aceitação cega das conclusões de outrem?
Não pode ser uma educação libertadora e crítica a mera replicação de memes de pais para filhos.
Geocentrismo é mais errado que heliocentrismo, e heliocentrismo é errado à luz da cosmologia moderna, que tem evidências bem convincentes de que se há um centro do universo, este não é o sol.
Uma criança só compreenderá o que são geocentrismo e heliocentrismo quando puder apreender conceitos como sol, planeta, órbita, gravitação, estrela. Não é doutrinando que ensinamos o que são essas coisas, e a evidência de que heliocentrismo é mais correto que geocentrismo é universal e acessível, a criança deve crescer para ser capaz de ter acesso a essa evidência.
Falo em heliocentrismo para mostrar que não podemos comparar os cálculos de Galileu e as observações de Hubble (o cientista ou o telescópio) com a inexistência de toda e qualquer divindade. Não seria epistemicamente coerente (nem correspondente), nem intelectualmente honesto.
Não observamos nada como o que fala Antônio Vieira (não o padre, me refiro ao homônimo escritor moderno) em um de seus contos, em que astrônomos acham o enorme corpo de deus morto entre as galáxias.
É melhor explicitar a diferença que estou traçando tacitamente entre ensino e doutrinação.
Doutrinar não é apenas ensinar. Ensinar aos filhos como se portar, a ter higiene, não pode ser doutrinação, pois não há nessas coisas elementos inverificáveis e subjetivos. Ter higiene é ter mais saúde, isso é verificável, foi verificado, e ensinar isso aos filhos é dever dos pais. Isso faz parte do senso comum, ou seja, dos conhecimentos universais da humanidade.
Doutrinar é passar adiante fundamentos filosóficos/religiosos/políticos que não podem ser conhecimento universal pelos seguintes motivos:
- não dependem de evidências universalmente e facilmente verificáveis.
- são mais resultado de argumentação filosófica (doxa) do que de conhecimento objetivo (episteme).
Mostrar aos filhos que higiene é importante é ensino. Dizer aos filhos que lavar as mãos é ter pureza e que pureza é condição necessária para uma vida após a morte é doutrinação.
Dawkins e Dennett têm a sensatez que falta a Alejandro Rozitchner. O propósito das obras ateias de Dawkins e Dennett (e posso incluir Michael Martin, Sam Harris e talvez Christopher Hitchens) não se resume a mostrar que as bases sobre as quais se apóiam os dogmas religiosos são frouxas e por isso eles não merecem tanta crença.
Uma motivação mais nobre desses pensadores é mostrar que vários problemas pelos quais a humanidade já passou são resultado de doutrinação - ou seja, imposição de opinião, e pior, ‘conhecimento’ sem fundamentação racional alguma. Ensinar uma língua a uma criança é diferente de doutriná-la com afirmações como
- "Jesus morreu para salvar a humanidade e é filho de Deus."
- "Maomé é um profeta que recebeu a verdade absoluta do anjo Gabriel."
- "Todo e qualquer deus não existe, tenho absoluta certeza de que são invenções como Buzz Lightyear, então você não precisa pensar a respeito, apenas acredite em mim. Não se incomode em crescer e entender minhas premissas para essa conclusão, apenas engula o que eu digo porque sou seu pai e você confia cegamente em mim."
Bertrand Russell já alertava para a preguiça intelectual de aceitar a tradição sem entender minimamente o que a fundamenta. Passar o ateísmo adiante através da doutrinação infantil pode ser melhor que passar o cristianismo adiante da mesma forma, entretanto, isso não é estimular pensamento crítico, isso é criar outra tradição doutrinatória. Isso é fazer o que já é feito há séculos: se aproveitar da aceitação cega das crianças ao que dizemos para elas para dá-las já mastigada uma conclusão nossa que, mesmo racional e fundamentada, muito tem de subjetiva.
Somos livres para, como apontou Russell, escolher a razão para ir até as fronteiras do nosso conhecimento e desconsiderar métodos não-racionais de obter respostas, como a revelação. Mas esta tem que ser uma decisão consciente e argumentada pela própria pessoa consigo mesma.
Se a maioria das pessoas nem percebe a fragilidade das crenças religiosas, é por causa da doutrinação (ou da preguiça intelectual, ou da falta de prioridade que dão ao assunto). Se as pessoas não reconhecem prontamente o erro da homofobia ou do racismo, também é por causa da doutrinação (não é conhecimento objetivo dizer que todo mundo tem que se comportar da mesma forma ou ter a mesma aparência). Se não da doutrinação, do desenrolar de um barbarismo mental que não encontrou a luz do pensamento civilizatório, o que é outro assunto.
Se nos próximos anos começarem a ver por aí filhos de ateus que fazem proselitismo e não têm nenhuma capacidade de pensamento crítico ou argumentação racional, lembrem-se do que eu disse sobre doutrinação infantil ser prejudicial.
Doutrinação é um mal, assim como é um mal o dogmatismo, e os dois estão intima e indissoluvelmente associados.
Se meus argumentos não foram suficientes até aqui para mostrar que a doutrinação é um mal, ainda posso usar estudos de caso. Que resultados gera uma educação rigorosa? Um dos resultados de uma educação rigorosa foi o brilhante filósofo John Stuart Mill, que entre outras coisas foi um dos primeiros a defender o direito das mulheres ao voto. Que resultados gera uma doutrinação rigorosa? Imagens valem mais que mil palavras.