Das questões morais
Tenho prazer de publicar aqui um trabalho conjunto entre os blogs ΓΝΩΘΙ ΣΕΑΥΤΟΝ e Tetrapharmakos in vitro.
Das questões morais — As raízes da moral humana
por Júnior Camilo (UFOP) & Eli Vieira (UnB)
No artigo intitulado “Das questões morais — 1ª parte” ¹, foram apresentadas diversas passagens da Bíblia, a fim de ilustrar os numerosos absurdos e as asquerosas imoralidades que podemos encontrar em suas páginas, de modo que, como argumentado ali, defender a idéia ridícula de que tais escrituras sejam uma fonte de princípios morais positivos para a humanidade não é apenas descabido: na verdade, é uma inversão completa daquilo que ela de fato nos ensina!
Algumas pessoas decerto vão insistir — fazendo jus ao juízo de que a fé é cega — em que, se o homem abrisse mão da religião, acabaríamos nos abdicando daquilo que nos faz praticar o bem, em especial na forma admirável do amor ao próximo. “Sem Deus”, diriam elas, “como o homem pode ser bom?” Alguns ainda formulariam essa frase de uma maneira não apenas equivocada em sua resposta retórica implícita, mas também reveladora de um interesse egoísta facilmente detectado no temor legível nas entrelinhas: “Se Deus não existir, para condenar os pecadores e recompensar os fiéis, para que então alguém vai querer ser bom?”
Com efeito, este último tipo de frase — que muitos já tivemos o desprazer de ouvir pessoalmente — revela o paradoxo por trás da inspiração cristã do “amor ao próximo”: ame o próximo para que não seja condenado a arder para sempre nas chamas do inferno! A forma como esse tipo de amor fraterno é ensinado aos crentes desde sua educação religiosa infantil, ou seja, como uma maneira de fazerem um “benzinho” a um irmão necessitado em troca de ganhar um “benzão” como retorno por seu investimento, recebido com juros e correção monetária, é uma lógica interesseira e oportunista. Mas o mais curioso é que ela é exatamente o que a teoria da evolução nos aponta como tendo ocorrido na origem da consciência moral humana, nos primórdios de nossa evolução.
Em outras palavras: a própria mentalidade religiosa, na forma como age a fim de favorecer o desenvolvimento do amor fraterno, revela a mente humana esculpida através dos tempos pela seleção natural, bem escondidinha por trás do véu negro da moralidade cristã. E, para quem ainda não entendeu a questão, o fato é que Deus não tem nada a ver com os nossos louváveis atos de generosidade e compaixão de uns para com os outros!
Porém, para começarmos a refletir sobre as verdadeiras razões de sermos capazes de gestos de comovente bondade, bem como de nos solidarizarmos com pessoas que vemos sofrendo na televisão (e que nem mesmo conhecemos), é importante que nos façamos uma primeira indagação: se nosso senso moral não é uma dádiva divina conferida exclusivamente ao homem, mas sim uma adaptação efetiva (e positiva) de nossa evolução, será que ele tem algum precursor evolutivo detectável no mundo natural? Uma vez que nos perguntemos isso, basta passar a questão adiante para a natureza e ver o que ela própria tem a nos dizer. E o que ela nos responde prontamente é o seguinte:
a) Vários insetos estéreis vivem a vida promovendo um tipo absoluto de altruísmo para com outros de sua espécie: algumas formigas do gênero Myrmecocystus passam quase que todo o tempo penduradas no teto de seu ninho subterrâneo com os abdomens espantosamente estufados, repletos de alimento líquido, servindo de depósitos vivos, para que não falte alimento a seus parentes durante os períodos de seca.
b) Um morcego-vampiro que conseguiu encontrar sangue durante uma caçada noturna pode regurgitar parte do sangue que consumiu, a fim de alimentar um morcego “amigo” que não teve a mesma sorte em sua expedição.
c) Medições em laboratório demonstraram que ratos apresentam um aumento de estresse extraordinário quando presenciam o sofrimento de um rato seu parente, em comparação com outro com que não tenham relações familiares.
d) Macacos são capazes de passar fome e não tocar na comida à sua frente, quando notam que, fazendo isso, outros seus colegas de jaula podem receber choques elétricos.
Estes são só alguns dentre inúmeros outros exemplos encontrados entre os animais, que deixam claro que a evolução conduziu e vem conduzindo muitos dos organismos viventes no sentido de desenvolverem comportamentos altruístas. E as razões disso, sobretudo no que diz respeito aos humanos, são as que, desde 1963, começamos a entender melhor, quando William Hamilton trouxe à tona sua teoria da seleção de parentesco — explicando como a seleção natural instalou um programa de possível auto-sacrifício num organismo, acionável em situações em que tal sacrifício é vital no sentido de favorecer um número maior de seus parentes (com quem compartilha grande parte de seus genes). Em seguida, em 1971, Robert Trivers esclareceu novos pontos ao apresentar ao mundo sua elegante teoria do altruísmo recíproco, pela qual passamos a compreender que, nas palavras deste último em seu artigo “The Evolution of Recriprocal Altruism” [A Evolução do Altruísmo Recíproco],
“simpatia, antipatia, agressão moral, gratidão, solidariedade, confiança, desconfiança, integridade, aspectos da culpa, e algumas formas de desonestidade e hipocrisia podem ser explicados como adaptações destinadas a regular o sistema altruístico”.
E de onde vem a bondade humana?
Ao que tudo indica, nosso altruísmo, nossa compaixão, dentre outros sentimentos e atitudes de que somos capazes uns para com os outros, surgiram todos a partir da evolução de características que, por um lado, por meio do auto-sacrifício de um em favor de seus parentes, possibilitaram o sucesso reprodutivo genético dos grupos animais que assim fizeram e fazem, e o insucesso e a extinção dos que não o fizeram (basta ver a abundância de animais sociais em relação a animais solitários), enquanto que, por outro lado, somando-se a isso, desenvolvia-se em nós a estratégia “interesseira” do altruísmo recíproco — do qual nos fornece uma curiosa metáfora a educação cristã, promovendo o amor ao próximo com base na ameaça de danação eterna nas chamas do inferno, em caso de negligência, bem como na promessa de salvação e vida eterna no tão-sonhado paraíso celeste para as almas caridosas. Com efeito, a avaliação cautelosa do comportamento humano e animal revela que nosso altruísmo evoluiu dessa curiosa dinâmica entre duas táticas bem-sucedidas no passado, sobretudo a do altruísmo recíproco, em que se busca favorecer alguém num momento, que possa retribuir o favor mais tarde — isso, desde que meu sacrifício não me traga um resultado negativo no somatório final.
O exemplo do morcego-vampiro citado acima ilustra bem a situação: o morcego A regurgita parte do sangue consumido para dar de alimento ao morcego B e fica com crédito perante este, que mais tarde vai lhe retribuir o favor de forma semelhante. Mas é importante avaliar bem o comportamento do morcego A, para entendermos melhor a natureza de seu gesto, que é: sair no lucro! Isso mesmo! Afinal, ele regurgita parte do sangue que conseguiu, porém fica com a maior quantidade para seu próprio consumo (significando que seu sacrifício não representou todavia um grande prejuízo para si mesmo), ao passo que, para o morcego B, que não tinha conseguido sangue algum, o sacrifício do outro foi vital, e, logo, sua dívida para com o “amigo” é desproporcionalmente maior do que o sacrifício real feito pelo outro. No fim, o morcego A se alimentou e ainda garantiu o futuro comprometimento do outro para consigo, no evento de uma possível situação parecida mais tarde.
Vale lembrar, no entanto, que se o gesto altruísta do morcego é interesseiro em princípio, isso não quer dizer que seja conscientemente interesseiro — como é óbvio, visto que estamos bem cientes da irracionalidade desse animal. O morcego não faz contas e calcula seus lucros! Ele apenas segue seus instintos que, por sua vez, só lhe impulsionam a agir em favor do outro porque a tática se deu bem no passado, no sentido do sucesso de sobrevivência e conseqüente aumento da chance de reprodução da espécie. No entanto, quando pensamos nos seres humanos, corremos o risco de não enxergar as coisas tão obviamente assim — temos uma forte tendência a não percebermos que o altruísmo humano é tão interesseiro quanto o de outros animais, sobretudo porque se parece com ele inclusive no sentido de que normalmente não temos consciência do interesse “egoísta” motivador.
Ao mesmo tempo, nem há motivo para se desesperar ao ler o que foi dito acima. Pois, antes de mais nada, é importante deixar claro que a idéia de “gene egoísta” proposta por Dawkins apresenta a expressão como uma metáfora para se tentar descrever a lógica da seleção natural: pensar nos genes como se tratando de agentes com motivos egoístas. Todavia, é importante salientar que, se por um lado os genes têm motivos metafóricos — isto é, fazer cópias de si mesmos — por outro lado os organismos que eles acabam estruturando têm motivos reais. E o mais importante de tudo: não são os mesmos motivos! Na verdade, não raro a ação mais “egoísta” de um gene pode ser instalar motivos verdadeiramente altruístas num cérebro humano — vínculo e desprendimento sinceros, sentimentos puros, profundos.
Como Steven Pinker salienta:
“O amor pelos filhos (que transmitem nossos genes à posteridade), por um cônjuge fiel (cujo destino genético é idêntico ao nosso) e por amigos e aliados (que confiam em nós se formos confiáveis) pode ser ilimitado e irrepreensível quando estamos falando de nós, humanos (nível próximo), mesmo se metaforicamente for egoísta quando estamos falando em genes (nível último)”. (PINKER, Steven. Tábula Rasa, pág. 265.)
Portanto, antes de prosseguirmos falando sobre os motivos geneticamente “egoístas” por trás de nosso altruísmo e outros sentimentos conceitualmente positivos, a primeira coisa a destacar é: não devemos confundir as coisas como são em nível último com aquilo que elas são em nível próximo.
Esclarecido este ponto, prossigamos!
Para isso, no intento de verificarmos a procedência biológica de nosso senso moral, talvez valha a pena nos determos um pouco na análise de um sentimento integrante deste: nosso sentimento moral de culpa.
A culpa dentro de cada um de nós
Num experimento que visava a avaliar o sentimento de culpa das pessoas, vários voluntários foram colocados numa situação em que tiveram a impressão de ter quebrado uma máquina muito cara, fora das vistas de outros. Logo após o incidente, chamou-se cada uma dessas pessoas para participar de alguns testes não muito agradáveis, sendo que a algumas delas tinha sido revelado anteriormente que sabiam sobre a máquina avariada, enquanto que, com outras, nunca se tocou no assunto, dando a entender que não tinham conhecimento do acontecido. As pessoas confrontadas com a afirmação de que os outros sabiam sobre o incidente mostraram-se mais dispostas a participar dos testes (mesmo que eles não lhes agradassem). Por outro lado, aquelas que pensavam que ninguém sabia o que tinham feito com a máquina simplesmente se recusaram a participar dos testes de que não gostavam. Ou seja, é claro que aqueles que aceitaram fazer os testes o fizeram movidos pelo peso da culpa pela máquina quebrada. Mas o que a experiência nos revela de realmente intrigante?
Bem, a verdade é que, se a culpa fosse um valor moral diferencial, incutido nos seres humanos no evento de uma suposta criação da vida pelas mãos de Deus, ou fosse aquele farol de orientação moral como a consideravam os pensadores idealistas, seu peso sobre os ombros das pessoas não deveria ser algo que dependesse do fato de a má-ação ser descoberta ou não pelas outras pessoas. A má-ação deveria gerar o sentimento de culpa independentemente de os outros terem conhecimento do que foi feito. Porém, a culpa é, ao que tudo indica, tão-somente uma maneira de satisfazer a si e aos outros no nível de sua retribuição. E sua intensidade portanto vai ser maior sobre nós dependendo de quem sabe ou pode em breve vir a saber a respeito daquilo que se fez.
De um jeito parecido, quando nos deparamos com um mendigo na calçada, implorando por alguns trocados, é uma reação comum que nos sintamos mal por não ajudar essa pessoa. Porém, o que faz nossa consciência doer mesmo é o fato de termos olhado nos olhos daquela pessoa, quando ela nos dirigiu a palavra, e ainda assim seguimos sem dar qualquer ajuda. Essa é a importuna pecinha psicológica do quebra-cabeça da culpa! Pelo que os dados demonstram, o que nos deixa incomodados não é tanto o fato de não darmos a esmola pedida, mas sim o de sermos vistos não dando a esmola — ainda que o único olhar testemunha de nossa atitude tenha sido o do próprio pedinte.
As raízes da moral humana
Com exceção do breve parágrafo em que destacamos a observação de Pinker sobre como devemos entender nossa programação moral por genes “egoístas”, por todo o restante do texto até aqui tem-se a impressão de que a idéia sustentada é simplesmente a de que nossos sentimentos e atitudes mais nobres não apenas são inspiradas por nossos genes egoístas, como também, por essa mesma razão, são aparentemente atitudes voltadas para o nosso próprio interesse em última instância, certo? É mais ou menos como se fôssemos um bando de hipócritas e dissimulados com que a natureza superpovoou o planeta. Mas as coisas são menos simplistas do que tal conclusão possa sugerir. Afinal, como já destacado no mencionado trecho sobre Pinker, isto é apenas confundir os níveis último e próximo em nós, o que é um tolo equívoco. Basta pensar um pouco mais: se o motivo evolutivo de a seleção natural ter favorecido nosso comportamento altruísta na sociedade fundamenta-se apenas na possibilidade de retribuição futura, bem como no fato de que aquele que se mostra mais disposto a ajudar os outros tem melhores chances de se dar bem e receber mais apoio e incentivo, como explicar então o altruísmo para com estranhos? Por que nos sentimos mal em não ajudarmos um mendigo, por exemplo, já que sabemos que quase com certeza ele não vai poder retribuir o gesto? Sim, por causa do sentimento de culpa descrito acima, mas... Por que sentimos essa culpa? O que faz com que ela se manifeste em nós, para início de conversa, se, como dissemos acima, muitas vezes somos apenas nós que sabemos que não ajudamos o mendigo? Pergunta intrigante diante do que já afirmamos até este ponto, não é mesmo?
Pois bem... O altruísmo e a compaixão para com pessoas que encontramos uma única vez (ou mesmo aquelas cujas tragédias pessoais apenas vemos na televisão), que logicamente não vão poder retribuir qualquer gesto nosso no futuro, pode ainda assim funcionar como um comportamento geneticamente programado de auto-persuasão visando a convencer o próprio altruísta de sua bondade, o que tornaria mais eficaz sua atitude, no sentido de convencer socialmente os outros da mesma coisa. O auto-engano, como um mecanismo psicológico capaz de nos convencer de nossa bondade, de nos fazer experimentar verdadeira satisfação num ato de caridade praticada para com qualquer outro elemento do grupo humano, é uma adaptação evolutiva complexa, mas surge como uma hipótese um tanto plausível, que vem sendo defendida por alguns especialistas no campo da Psicologia Evolucionista.
Nesse sentido, a sensação de mal-estar diante do mendigo a quem negamos ajuda, bem como a satisfação que experimentamos quando damos a esmola, tal como qualquer sentimento de compaixão que se manifesta em nós diante da desgraça alheia, são todos sentimentos reais, algo que verdadeiramente nos afeta emocionalmente, ainda que a programação básica que cria a auto-ilusão não deixe de ter, em nível último, uma raiz interesseira. Algo que não podemos deixar de notar, no entanto, é que apesar de percebermos os ajustes adaptativos que tal mecanismo psicológico representa, até mesmo seus sintomas de motivação egoísta, a verdade é que nosso altruísmo e compaixão por estranhos não deixa de ser um intrigante “equívoco” de nossa evolução darwiniana contra o atendimento mais imediato aos interesses de nossos genes, que é: reproduzir e fim de papo!
Em todo caso, antes que alguém comece a ter um ataque de nervos ao ler os parágrafos acima — que nossas atitudes morais têm uma origem em nossa programação genética e são, em princípio, manifestações sintomáticas de um comportamento naturalmente interesseiro — passamos a palavra agora a Richard Dawkins, a fim de que ele esclareça por nós qualquer mal-entendido acerca do que queremos dizer com isso:
"A seleção natural, nos tempos ancestrais, quando vivíamos em bandos pequenos e estáveis como o dos babuínos, programou impulsos altruístas em nosso cérebro, junto com impulsos sexuais, impulsos de fome, impulsos xenofóbicos, e assim por diante. Um casal inteligente pode ler Darwin e ficar sabendo que o motivo último de seus impulsos sexuais é a procriação. Eles sabem que a mulher não ficará grávida porque está tomando pílula. Mesmo assim seu interesse sexual não fica diminuído por conta desse conhecimento. Desejo sexual é desejo sexual, e sua força, na psicologia individual, independe da pressão darwiniana que o provocou. É um forte impulso que existe de forma independente de sua explicação racional.
Estou sugerindo que a mesma coisa aconteça com a bondade — com o altruísmo, a generosidade, a empatia, a compaixão. Nos tempos ancestrais, só tínhamos a oportunidade de ser altruístas em relação aos parentes próximos e a potenciais replicadores. Hoje essa restrição não existe mais, mas a regra geral persiste. Por que não persistiria? É a mesma coisa que o desejo sexual. Não podemos fazer nada para deixar de sentir pena quando vemos um desafortunado chorando (mesmo que não seja nosso parente nem seja capaz de retribuir), assim como não podemos fazer nada para deixar de sentir desejo por um integrante do sexo oposto (que pode ser estéril ou incapaz de reproduzir). As duas situações são “erros”, equívocos darwinianos: equívocos abençoados e maravilhosos.
Não encare nem por um segundo essa darwinização como desmerecedora das nobres emoções da compaixão e da generosidade. Nem do desejo sexual. O desejo sexual, quando canalizado pelos conduítes da cultura lingüística, ressurge na forma de grandes obras de poesia e de dramaturgia: os poemas de amor de John Donne, por exemplo, ou Romeu e Julieta. E é claro que a mesma coisa acontece com o redirecionamento equivocado da compaixão baseada no parentesco e na retribuição. A piedade em relação a um devedor, quando vista fora de contexto, é tão antidarwiniana quanto adotar o filho de outra pessoa." (DAWKINS, Richard. Deus, um Delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, págs. 288-289.)
Portanto, como Dawkins bem ilustrou, uma pessoa hoje em dia pode entender que o impulso instintivo que a faz gostar de sexo e procurá-lo não passa de uma programação genética resultante de seleção de formas eficazes de transmissão de seus genes a seus descendentes, por meio da procriação, sem que o fato de saber disso mude em nada seu desejo sexual ou afete de qualquer modo negativo sua vida nesse campo — como disse Dawkins, pode-se continuar a sentir desejo, sem problema algum, mesmo por uma mulher que sabidamente não vai engravidar e encontra-se portanto incapaz de passar adiante seus genes. Da mesma forma, não há nenhum motivo para desespero com relação ao conhecimento de que a vontade de ser generoso e piedoso para com os outros seja, em nível último, fruto de uma programação semelhante. Tais programações foram instaladas em nossos cérebros pela seleção natural (e outros mecanismos evolutivos) em tempos primitivos, quando estávamos mais próximos do comportamento de alguns de nossos parentes primatas do que deste comportamento que desenvolvemos com o progresso da civilização humana. Naquela época, a evolução nos fez produzir estratégias, o interesseiro altruísmo recíproco dentre elas, que poderiam garantir o sucesso reprodutivo de nossa espécie (e de seus genes), e ponto! Fomos bem-sucedidos nisso, afinal de contas, apesar de todas as guerras e egoísmo propriamente dito já somos mais de seis bilhões.
Acontece, no entanto, que nossa programação genética primitiva — a nossa famosa “natureza humana” — foi instalada com um conjunto de regras básicas e gerais que funcionavam para aquele ambiente original. Mas o curso da história humana alterou, e muito, o mundo em que vivemos. Descobrimos que, para construirmos a sociedade tecnológica de que hoje desfrutamos (com tudo o que ela tem de bom e de ruim), tínhamos um preço a pagar: muitas vezes o preço do controle de nossos impulsos animais visando à reprodução e à sobrevivência, até mesmo às custas do sacrifício de outros ao nosso redor. Assim, nossos impulsos para a dominação sexual bem como aqueles que nos levavam a atitudes egoístas e traiçoeiras em benefício individual tiveram de ser subjugados, sob a proliferação de organismos de cérebros mais adaptáveis às condições sociais que vinham surgindo. Aqueles homens com um sistema inibidor bem desenvolvido no córtex pré-frontal, destarte capazes de conter seu apetite sexual voraz, domar seu ímpeto selvagem, que os levaria em outros tempos a estuprarem qualquer fêmea à sua frente para satisfazer seu impulso básico de reproduzir, tiveram melhores chances de se desenvolverem no seio da sociedade moderna, ao longo da história. Ou melhor: a civilização é que na verdade só pôde se desenvolver com efeito a partir da sistemática e gradativa contenção desses traços impulsivos no comportamento humano, em especial no comportamento masculino.
As sociedades atuais não seriam possíveis se nós ainda nos comportássemos de modo a obedecer cegamente aos nossos instintos conforme sua programação original. Tivemos de aprender a lidar com nosso desejo sexual, adaptando-o ao mundo que vimos criando todos estes séculos, sublimando, como diria Freud, muito de nossa libido no sentido da criação artística e literária, convertendo outra porção desse mesmo desejo em alguma ambição pessoal de caráter não-sexual, e por fim aprendendo mesmo a usufruir de nosso desejo de uma maneira mais conscientemente prazerosa e menos voltada para o fim natural da procriação descontrolada. E eis todos nós, fazendo sexo mesmo quando sabemos que nenhuma gravidez vá resultar do ato. Um “erro” em nossa programação darwiniana, como diria Dawkins, mas é a “erros” como este que devemos muito do bem-estar que adquirimos na sociedade que construímos.
Assim também, embora nossa programação original para o altruísmo se fundamentasse no interesse egoísta pela retribuição futura, que, no passado, garantiu a sobrevivência dos que cumpriam à risca as regras do jogo (mesmo que não conscientes disso), a verdade é que tudo o que construímos mudou o mundo original em face do qual se encontravam nossos ancestrais. E também readaptamos nossa programação original que pedia um ato de bondade só para quem pudesse nos favorecer mais tarde. O advento da civilização e o ajuste adaptativo gradativo de nossos cérebros em face da assimilação dos valores que agregamos a ela produziram nossos comportamentos atuais. E, se ao nascermos, ainda somos basicamente criaturas dotadas de instintos para um comportamento egoisticamente “altruísta”, violento e dominador, tais instintos originais são confrontados com (e influenciados por) elementos de nossa civilização — tais como a educação, os costumes, as leis, as tradições, principalmente em nossa interação com nosso grupo de pares (nossos amigos), ao longo de nosso crescimento, e também, com relativa relevância, é preciso destacar as influências religiosas —, produzindo em nós algo equiparável àquilo que Freud chamou um dia de superego.
O resultado dessa complexa dinâmica interativa entre nossos impulsos básicos e os filtros dos valores assimilados, com o passar do tempo no curso da história humana, resultou num incentivo, em nível inconsciente ou subconsciente, favorável ao comprometimento para com o grupo humano como um todo, ainda que não devamos exagerar demais essa coisa do “tudo pelo bem da humanidade”, o que seria apenas um delírio romântico de nossa parte. E a motivação que jaz por sob nosso mecanismo de auto-engano está aí para nos lembrar disso! Mas, ainda assim, uma das adaptações que de fato fizemos, e que não podemos negar, foi que aprendemos a estender nosso altruísmo para o mundo, mesmo para além dos limites de onde qualquer retribuição possa vir. E o resultado disso foi o desenvolvimento da própria civilização — que, apesar de todos os seus problemas intrínsecos, está anos-luz à frente dos avanços obtidos por qualquer outra espécie animal.
Em “O Mal-Estar da Civilização”, Freud imagina um passado em que a humanidade matou seu pai. Se entendermos esse patricarca como um macho alfa dos grupos sociais, isso “aconteceu” evolutivamente, mas antes mesmo de nos tornarmos humanos: ocorreu no evento em que nossa linhagem se separou da linhagem que deu origem aos modernos gorilas. Essa bifurcação neste pequeno ramo da árvore da vida deu origem aos ancestrais imediatos dos gorilas e ao ancestral comum entre nós e nossos dois parentes mais próximos ainda vivos: o chimpanzé e o bonobo, que como nós têm grupos em que a hierarquia é incerta – não há um único despótico macho alfa (como há nos grupos dos gorilas). Este macho, o patricarca, não foi literalmente assassinado, apenas deixou de aparecer entre seus descendentes por causa da evolução. Houve, é claro, conseqüências disso para nosso instinto de moralidade, pois ainda que haja (parafraseando Orwell) uns “mais iguais que outros”, não há o absoluto do alfa “mais igual que todos”. Nossas hierarquias, que a própria história humana revela lábeis, permitem também éticas mais inclusivas, como veremos ao final deste texto.
E o nosso senso de certo e errado, de onde vem?
Marc Hauser, biólogo da Universidade de Harvard (EUA), promoveu um interessante estudo sobre o senso moral humano. Através da proposição de variados dilemas hipotéticos em que se avaliava se determinada conduta seria certa ou errada, obteve respostas curiosas. O resultado de seus estudos, publicado no livro Moral Minds: How Nature Designed Our Universal Sense of Right and Wrong [Mentes Morais: Como a Natureza Projetou Nosso Senso Universal de Certo e Errado], torna bem evidente que a forma como respondemos aos mesmos dilemas morais, bem como a incapacidade que temos de justificar devidamente as motivações que nos fizeram achar a atitude A aceitável e a atitude B totalmente descabida e inaceitável, é em sua maior parte independente de nossas crenças religiosas ou mesmo da ausência delas.
Só para citar um dos exemplos de testes propostos por Hauser, ele apresentou às pessoas a seguinte situação: uma mulher (batizada como Denise) encontra-se no comando de uma estação de controle ferroviário; há um vagão desgovernado seguindo pela linha em direção a um grupo de cinco pessoas; Denise pode acionar um botão e fazer com que o vagão tome um desvio logo à frente, evitando assim a morte das cinco pessoas; porém, há um homem preso no desvio e ao enviar-se o vagão para lá, este outro homem preso na linha vai ser atropelado inevitavelmente. Diante de tal proposição, a maioria esmagadora das pessoas concordam que, em face do inevitável e tendo o poder de interferir, é moralmente permissível, ou até mesmo uma obrigação, que Denise salve as cinco pessoas, mesmo que isso cause a morte daquele outro homem. Pareceu a todos algo moralmente lógico que causar o sacrifício de 1 em benefício de 5 fosse menos penoso à consciência do que o inverso.
Hauser então reformulou o problema e tornou a apresentá-lo às pessoas avaliadas. Agora, o vagão seguia descontrolado rumo às cinco pessoas, sem nenhum desvio possível no caminho. Porém, havia uma chance: o vagão estava prestes a passar por debaixo de uma ponte e poderia ser certamente parado, caso fosse jogado diante dele algo de considerável peso que obstruísse sua passagem. Eis o dilema: o único peso disponível naquele momento e lugar, capaz de produzir o efeito de barrar a passagem do vagão, é um homem extremamente obeso que se encontra distraído, sentado por sobre a ponte, observando o pôr-do-sol. Seria uma atitude moralmente aceitável empurrar o gordo de cima da ponte, a fim de fazer parar o trem e, como sugeria a lógica anterior, com o sacrifício de uma única vida, garantir a salvação de cinco outras pessoas? Não acreditamos que será uma surpresa para ninguém descobrir que a maioria das pessoas acharam tal atitude simplesmente absurda e inaceitável.
Porém, ao serem questionados quanto ao porquê de sua aceitação do sacrifício daquele primeiro homem, no dilema de Denise, e de sua rejeição ao sacrifício do gordo na ponte, todos tiveram dificuldade em articular uma explicação convincente. Mas o fato curioso era que, mesmo não sabendo explicar bem o porquê de cada atitude, diferentes pessoas, religiosas e atéias, tiveram o mesmo padrão de comportamento e decisão moral. Ao que tudo indica, a maioria de nós tem uma forte intuição de que há uma diferença muito relevante entre um caso e outro, mesmo que não consigamos apontar com precisão que diferença seja essa.
Um conhecido princípio articulado pelo filósofo alemão, Immanuel Kant, e que Richard Dawkins relembra em sua obra já citada aqui, propõe que nenhum ser racional deve de forma alguma ser usado, sem seu consentimento, como um simples meio para se atingir um fim, ainda que tal fim seja o bem de outras pessoas. Tal percepção dos fatos, que Kant via como um absoluto moral, ao passo que Hauser identificou como algo que a evolução implantou em nós, é que parece dar fundamento a nossa distinta avaliação dos dois dilemas. Enquanto estamos ativa e positivamente usando o gordo para parar o vagão, o que colide com o princípio kantiano, no caso do sujeito preso no desvio, este apenas teve o azar de estar ali, sendo simplesmente um efeito colateral da atitude tomada para salvar as cinco outras pessoas.
Para confirmar seus resultados, Hauser e seus colaboradores fizeram algumas modificações nos dilemas, a fim de torná-los mais condizentes com as situações enfrentáveis no ambiente mais selvagem, e propôs os mesmos ao povo kuna, indígenas da América Central que têm pouquíssimo contato com os ocidentais e não possuem uma religião formal. No fim, os kuna demonstraram ser capazes de decisões morais praticamente iguais às da maioria de nós.
Portanto, se nossa moralidade tivesse sua fonte na religião, não deveríamos ver crentes, ateus e índios que não se espelham em nossas sociedades desenvolvidas apresentarem padrões praticamente idênticos de avaliação moral. Ou em outras palavras: não é preciso acreditar em Deus para que sejamos bons, altruístas e capazes de julgar o certo e o errado. Nosso senso moral evoluiu em nós e conosco, ao longo da história humana.
Sobre a moral, a filosofia, a ética... e a felicidade
Dito tudo isto, é hora de tecermos algumas outras considerações relevantes acerca de alguns campos do saber humano em que esse senso moral foi (muitas vezes erroneamente) racionalizado, e alguns de seus aspectos individuais, reforçados e institucionalizados.
Neste sentido, podemos destacar, por exemplo, que a tentativa de se desvincular ética e felicidade é um dos maiores crimes já cometidos por alguns sistemas de crença que se perpetuam através da doutrinação infantil, tal como ocorre, para se dar nomes a alguns bois, nas conhecidas religiões abraâmicas. De fato, ao proporem uma moral (um conjunto unilateral de regras éticas), essas religiões — e alguma instância social maior que as abrigue — parecem ter tido notáveis objetivos a atingir: garantir a agregação social, garantir a obediência a um poder central (intermediário direto de Deus, ou coligado a intermediários dessa natureza), e garantir a inquestionabilidade da fé — algo essencial para a integridade dessas instituições. Sua meta, em momento algum, foi a de garantir a maior felicidade, algo que se pode perceber até mesmo no encorajamento à resignação passiva e inerte expresso no evangélico Sermão da Montanha. Em suma, não passam de objetivos adaptativos: garantem sobrevivência e reprodução tanto para as idéias associadas a essa moral institucionalizada quanto para as pessoas subordinadas a ela.
Ao longo da história, tal moral religiosa foi racionalizada por filósofos eminentes, como Immanuel Kant, por exemplo, e seu Imperativo Categórico — agir de tal forma, pela “boa vontade”, que sua ação possa ser convertida numa lei universal. Ou seja, agir simplesmente por dever. Todavia, agir de uma forma e não de outra por obrigação, por Imperativo Categórico, e recomendá-lo como a única Moral possível, é corroborar um sentimento de obrigação que denota medo de punição ou interesse egoísta por recompensa. Em outras palavras, não há nada de racional no Imperativo Categórico: ele é, em seu âmago, nada menos que uma experiência cósmica de um grande Pavlov imaginário para domar instintos humanos. Ao passo que o interesse teísta do Imperativo Categórico fica, destarte, administrado sob o nome de “boa vontade”.
No tocante a isto, é interessante notar que Kant use a palavra vontade, pois de fato um escravo que é espancado não tem vontade de voltar a ser espancado, e uma pessoa egoísta tem vontade de ser recompensada por agir “bem”. E dentre todas as vontades a que tem mais poder é precisamente aquela atribuída ao próprio experimentador: Deus.
De qualquer forma, mesmo que o Imperativo Categórico fosse de fato uma moral racional, o agir por dever que ele implica não garante nenhuma felicidade, nem para quem o obedece nem para quem recebe os resultados de sua aplicação. Implica apenas a obrigação no agir, qualquer que seja ele — evidentemente o agir maior que Kant esperava emanaria de Deus, insuflado na boa vontade.
Na moral por dever extraída da Bíblia, por sua vez, nem mesmo o Sermão da Montanha dos evangelhos visa à felicidade. Deixando à parte sua lírica, pode-se observar que ele, com efeito, consiste tão somente em promessas de alívio e ameaças de punição, ambas de caráter transcendental. Ao passo que outros livros bíblicos, como o Levítico, recomendam a regra áurea de amar “teu próximo como a ti mesmo”, a qual alguns estudos, como os de John Hartung, por exemplo, demonstram ser aplicável apenas no sentido de “próximo” = membro do próprio grupo, da própria tribo. Assim, uma pergunta faz-se mais do que necessária: Será que tal moral por dever bíblica, por sua vez, tem a maior felicidade como meta, ou continua apenas prestando o mesmo serviço à agregação social e à obediência?
Como ética é em grande parte uma questão de escolha, talvez seja mais do que hora de escolher: queremos ou não queremos uma ética que almeje à felicidade possível?
De fato, chega a ser irônico que pareça ser condenação comum do Zeitgeist atual atribuir imoralidade ao fascismo, justamente porque ele trouxe infelicidade à Humanidade. Afinal de contas, a moral teísta de Kant não condenaria um fascista, visto que um nazista que assassine judeus assim age querendo tornar sua ação uma lei universal. Na verdade, para não se reconhecer como imoral, dois usos da moral por dever são necessários ao nazismo. O primeiro, da regra áurea do quid pro quo, é excluir os judeus do grupo digno de receber investimento moral positivo, ou seja, do próprio grupo apreciado pelo nazista: a raça ariana. Essa regra áurea consiste em fazer ao próximo o que é desejado para si mesmo, uma regra ressurgente em várias culturas e vários sistemas de crença, como o budismo. O “próximo” do nazista, espelhando a visão bíblica, só pode ser um próximo ariano. A palavra “próximo”, ou “vizinho”, como já destacado em face da análise de Hartung, serve tão-somente ao sectarismo porque traz consigo uma noção geográfica e de seleção de parentesco. Ou seja, ainda aqui a moral por dever não parece mudar os objetivos adaptativos tratados anteriormente.
O outro uso da moral por dever, que torna o nazismo algo imaculado, é tratar a “boa vontade” com a característica plasticidade que só a fé pode nela imbuir. Assim, mesmo quando a figura de Deus não é evocada, a “boa vontade” pode se prestar aos interesses de qualquer senhor.
Em sua obra mais conhecida, o escritor Aldous Huxley descreve uma sociedade futura em que humanos seriam condicionados desde a fase embrionária para executarem tarefas pré-estabelecidas pelos detentores do poder. Os regimes de condicionamento se dariam de diferentes formas para diferentes castas. Esta abominável sociedade do futuro, do livro Admirável Mundo Novo, já foi descrita como uma sociedade “da ciência”. Entretanto, o condicionamento moral, por reforçamentos de punição ou recompensa, identifica-se muito mais com pensamentos religiosos cujos adeptos somam bilhões no mundo de hoje: cristãos, muçulmanos, judeus, hindus, espíritas, entre outros.
O Abominável Mundo Moderno está aqui. Ele não dispõe de maquinário complicado para a criação em massa de bebês, mas dispõe de recursos humanos extensos para a doutrinação de crianças. Ele não dispõe de tecnologia para dar choques em bebês que se interessem por livros, mas dispõe de uma massa de mentes adultas que sentem um choque de culpa ao primeiro pensamento impuro de questionamento dos dogmas de fé, tudo graças a um subproduto infeliz de um ajuste adaptativo que fez de nossos cérebros infantis crédulos acríticos nas palavras dos adultos de nossas relações — o que, em ambiente ancestral, garantia nossa segurança e sobrevivência ao levar a sério seus alertas, mas, por outro lado, tornou nossas mentes vulneráveis a ensinamentos ignorantes e equivocados acerca do mundo e dos próprios valores morais, do ponto de vista da ciência e de uma ética voltada para nossa potencial felicidade.
Como instrumento de reforço das crenças ensinadas e assimiladas acriticamente na infância, essa moral rasa revela-se muito pouco humana: velhos experimentos comprovam que se convence muito facilmente vários tipos de animais, de camundongos a invertebrados, a agir de certa forma por temer punição ou por ter expectativa de ganhar uma recompensa. Essa moral é apelativa às zonas que poderiam ser relacionadas a partes “reptilianas” do cérebro humano, os centros mais internos do telencéfalo, relacionados ao prazer e à dor. Condiciona-se um gambá, cuja capacidade de antecipar o futuro é limitada, dando a ele algo que lhe agrade o paladar. Condiciona-se um crédulo — não como quem modela o cérebro de fora para dentro, mas no sentido de reforçar suas crenças assimiladas por seu “software” mental inato —, através de uma promessa reconfortante, pois sua mente computacional, diferentemente da do gambá, calcula o futuro com assombro. (É no mínimo muito irônico que justamente o cristianismo, cujos mais brilhantes pensadores teciam análises taxativas quanto ao instinto estúpido dos animais comparado à brilhante razão humana, tenha estimulado historicamente uma moral de condicionamento.)
A moral por dever (não vemos distinção entre ela e o que se costuma chamar de “moral conforme o dever”) é um behaviorismo anacrônico, pois usa para seus fins técnicas como aquelas usadas por Pavlov, Skinner, e outros. Estes, representantes de escolas da Psicologia cujas mais altas ambições há um bom tempo já foram refutadas por psicólogos, neurocientistas e cientistas cognitivos, amparados por estudos produzidos sobretudo nas últimas duas décadas, quanto à sua (dos behavioristas) pretensão de modelar a mente humana como se esta fosse esculpível. Tal pretensão caiu por terra — pois a mente humana não é uma tábula rasa —, mas isso não significa que tais técnicas de condicionamento não sirvam para a produção de outputs de reforço de algum dado conceitual (um objeto de crença) assimilado por via de inputs processados pelo cérebro, visando a solidificar o status do dado na mente e a inibir a produção de outros outputs (incerteza ou descrença quanto ao dado conceitual em questão).
De fato, esses condicionamentos morais têm seu nível notável de eficácia neste sentido, ao passo que se dão por reforços positivos (promessas de uma grande recompensa contanto que o indivíduo se comporte da forma desejada) e por reforços negativos (ameaças de punição e ostracismo). Os princípios de que dependem para sua manutenção são processos mentais primitivos, muitos dos quais identificados com o que se chama de “instinto”.
Da compreensão de todos estes fatores, podemos concluir que, se queremos a maior felicidade possível para o futuro da Humanidade, é simplesmente um erro permanecer fiéis a uma moral por dever. Devemos escolher uma ética (e destilar dela se possível uma moral) que seja aberta à nossa nova condição geopolítica (que não admite o sectarismo), que compreenda a natureza humana como fruto de um processo de descendência com modificação no tempo geológico, e que não seja antagônica às volições humanas que brotam dessa natureza, pois negá-las só gera neuroses evitáveis e um mal-estar à civilização — para usarmos duas idéias que remetem sabidamente a Freud, que pode ter cometido seus equívocos (e não foram poucos, diga-se de passagem), mas também teve destacáveis acertos em suas idéias. E há que se compreender, adiante, que é a esta ética que a ciência acaba prestando um serviço substancial.
Então, em princípio, essa ética tem de reconhecer a necessidade do prazer, não buscar influenciar na volição hedonista com condicionamentos. É vital que nosso sistema límbico deva interagir harmonicamente com o neocórtex — e não batalhar com ele, procurando emergir em meio a uma cultura repressora. E essa ética deve evitar a dor a qualquer custo, no corpo e na parte do corpo que chamamos mente. E isto implica, portanto e por sua vez, num uso inteligente do prazer para evitar a dor futura nossa e dos outros por nossas atitudes (princípio que evoca o sábio John Stuart Mill). Algo que migra do nível de um organismo ao nível social, onde o valor maior dessa ética seja, portanto, a empatia. Reconhecer-se no outro, e não tê-lo como o mero “próximo”.
De fato, nada metaforicamente, todos na espécie humana possuem faces, e todas as faces, como bem lembra Carl Sagan em Dragões do Éden, são especialmente discriminadas por partes específicas do lobo temporal no cérebro. Para sermos mais claros, há muito em nossos cérebros que, desenvolvidos por sob a lâmina afiada da seleção natural, serve-nos mui positivamente em nossa relação com o outro. Neurônios-espelho, que reconhecem a ação do outro como se fosse própria, fundamentam fisiologicamente em nós o sentimento de empatia. O córtex pré-frontal ventral medial, que é a área cerebral responsável por julgar se o outro pertence ao seu mesmo grupo, relaciona-se, por sua vez, ao que se chama “teoria da mente” — o instinto humano de reconhecer mentes independentes ao seu redor e tentar prever o que se passa nelas. Logo, o que se deve fazer é ensinar às crianças o reconhecimento de faces diferentes como membros de um grupo só, a espécie, e é apenas a este grupo que elas devem fidelidade (e não a machos-alfa, porque estes provavelmente ou estão mortos, como diz Freud, ou são imaginários, como também diz Freud).
Uma ética pela empatia é uma ética que reconhece o caráter social da mente humana, tanto em seu surgimento pela evolução quanto pelo desenvolvimento ontogenético. Estes princípios, ao contrário daqueles que pressupõem uma obrigação e estimulam conflitos entre grupos através da moral por dever, apresentam-nos uma étical útil. Não é por acaso que John Stuart Mill, possivelmente o primeiro pensador moderno a propor uma ética secular, utilizasse o princípio da menor dor e do maior prazer sob a alcunha de Utilitarismo. E Mill, por sua vez, não deixa de dar crédito ao pai intelectual desta idéia: Epicuro de Samos.
Todavia, antes de falarmos desse grande filósofo, façamos uma breve digressão.
Na pintura renascentista “A escola de Atenas”, de Rafael, atribui-se a identidade de Epicuro a uma figura encorpada vestida de azul, apoiada sobre um livro que folheia com um semblante despreocupado e entretido. Epicuro pouco se destaca ao extremo esquerdo da pintura. Das dezenas de pessoas retratadas, apenas três aparentam dar alguma atenção a ele: uma criança que apóia a capa do livro que Epicuro lê, um homem de semblante sofrido, que o abraça, e uma mulher que observa a cena com uma expressão que nada tem de aprovação, embora não esteja claro que seja neutralidade ou desaprovação. Uma mulher e um velho nas imediações não parecem dar atenção ao filósofo. Eis o que podemos ver nessa famosa pintura de Rafael, à qual retornaremos pouco abaixo.
Em seu conceito de Tetrapharmakon (o remédio para a alma em quatro doses), Epicuro antecipa muito da ética amigável à natureza humana: deuses e morte não devem ser temidos, e é possível adquirir felicidade e escapar à dor. Nele, ataraxia é a condição de uma mente sem dor psíquica, e aponia um estado de ausência de dor e de medo. Epicuro recomenda a amizade, e para ele o que caracteriza bem e mal é dor e prazer, ou seja, a sensibilidade. A morte, em sua visão, é quando a mente se extingue junto com a sensibilidade; por isso, não haveria motivo para viver com base em recompensas ou punições póstumas.
Epicuro viveu entre 341 e 270 antes de Cristo, ou seja, para aqueles que detinham o saber, uma ética secular já estava disponível há milênios. Entretanto, lá está o filósofo, no afresco de Rafael, dentro do Palácio Apostólico do Vaticano desde 1510: apenas um pagão silencioso e entretido num livro que provavelmente teria sido queimado por boa parte das pessoas que já estiveram entre as paredes daquele prédio.
No centro da pintura estão Platão e Aristóteles, com seu mundo das idéias e motor imóvel, que inspiraram muito da teologia patrística e escolástica. Que inspiraram até mesmo, provavelmente, o fantasma na máquina de Descartes — termo na verdade cunhado por Gilbert Ryle, para referir-se à doutrina dualista cartesiana.
Assim como não há evidência alguma de “fantasma na máquina”, quando a máquina é o corpo humano, com todas as suas marcas indeléveis de ancestralidade evolutiva, não parece haver também fantasma algum na máquina do cosmo, com todas as suas marcas indeléveis de autonomia. Dessa forma, a visão naturalista do mundo, na qual podem estar contidos agnosticismo e ateísmo, é compatível e dialoga com uma moral não de dever, mas de ethos, de escolha através da empatia, e quando possível através de cálculo utilitarista.
No fim, se a humanidade visa a uma felicidade possível, facilmente se pode perceber que toda esta seção resume-se a uma simples colocação: uma ética para máquinas sem fantasmas — é isso que pode trazer mais felicidade à nossa espécie no futuro.
Concluindo: como ficamos sem a religião?
Como já dissemos em mais de uma ocasião, há uma crença (totalmente infundada) de que, se as pessoas deixassem todas de acreditar em Deus, o mundo acabaria virando um inferno, abarrotado de pessoas ruins, sádicas, mesquinhas, de péssimo caráter, etc. Contudo, como este texto buscou demonstrar até aqui, não é bem assim!
A Bíblia, como já discutido no texto indicado na nota final deste artigo, está longe de ser um apreciável guia de conduta moral para a humanidade. E a crença em Deus, pura e simplesmente, ao contrário do que muitos pensam, não é a base da moralidade de nossa espécie. Além do que, ainda há que se considerar outros elementos importantes nesta discussão.
Steven Pinker descreve num de seus livros algo um tanto interessante para nossa discussão aqui. Em Tábula Rasa, o psicolingüista e cientista cognitivo de Harvard analisa três “dogmas” cultivados em muitos ramos das ciências sociais modernas, a saber: 1) a mente humana é uma tábula rasa sem nenhum traço inato; 2) o homem é o bom selvagem rousseauniano, que nasce bom, sendo a sociedade o que o corrompe posteriormente, e 3) há uma aparente unanimidade em torno da crença de que há um fantasma na máquina, isto é, de que cada um de nós tem uma alma — ou algo equivalente — que toma decisões livremente, sem que pesem sobre elas nenhuma pressão genética.
Pinker vai buscar refutar cada um desses pilares, o que faz de uma maneira bem convincente, diga-se de passagem; no entanto, o que nos interessa em especial para este texto é uma parte em que ele narra uma experiência pessoal, ocorrida quando era um adolescente no Canadá, país que se orgulha de seus consideravelmente baixos índices de violência. O autor conta que, no dia 17 de outubro de 1969, a polícia de Montreal resolveu entrar em greve. A greve dos policiais resultou numa seqüência assombrosa de atos (quase ensandecidos) perpetrados pelos moradores, que saíram às ruas assaltando bancos, saqueando lojas, invadindo hotéis e restaurantes, houve alguns casos de homicídio com arma de fogo, enquanto taxistas incendiaram uma garagem de serviço de aluguel de limusines, tudo num aparente surto de loucura e vandalismo coletivos. No fim do dia, os números impressionavam: 6 bancos assaltados, 100 lojas saqueadas, 12 incêndios provocados, 2 assassinatos, centenas e centenas de vitrines estilhaçadas, e 3 milhões de dólares em prejuízo material.
Como os dados dos censos informam, a maioria da população de Montreal declara acreditar em Deus. E, comentando o assunto em seu próprio livro, Deus, um Delírio, Dawkins faz a pergunta que certamente muitos já devem ter se feito diante das cenas descritas acima: por que a sua crença em Deus não impediu as pessoas de agirem como bestas ensandecidas e gananciosas? Será que todos aqueles canadenses perderam a fé no mesmo dia, sob efeito de algum poderoso truque de magia negra, justamente no dia em que o braço terreno da lei não estava em atividade para reprimi-los? Parece bem duvidoso que tal truque mágico tenha sido realizado. E mais: aprendemos uma valiosa lição com este acontecimento — não interessa o quanto as pessoas afirmem que são incapazes de más-ações por conta de seu temor a Deus; a verdade é que o medo que temos é da justiça terrena, é da cadeia, é de ver o sol nascer quadrado no xilindró! É a autoridade que criamos em nossas sociedades que com efeito oferece-se como um dado assimilado em nossas mentes que nos coíbe. E nossas regras sociais, as leis que todos os povos humanos desenvolveram, como parte integrante do contrato social, é mais um produto que nossos cérebros em evolução tiveram de desenvolver para coibir nossos instintos mais primitivos, que ameaçavam (e ameaçam) a manutenção do elo social.
Aliás, lembram-se do experimento testando o sentimento de culpa das pessoas (que achavam que tinham quebrado uma máquina cara)? Aquelas que não demonstraram sinais de culpa (porque achavam que ninguém sabia da sua má-ação) não eram pessoas que acreditavam menos em Deus do que as outras que participaram dos testes apenas como forma de reparar o mal-feito, após serem confrontadas com o fato de que haviam sido pegas em flagrante. E parece que isso já nos diz muita coisa sobre toda essa questão da moralidade humana — isto é, que ela é realmente humana, natural, fruto de nossa evolução, e não algo divinamente inspirado nas pessoas.
Todavia, se os dados ainda não lhes soam tão convincentes, talvez devêssemos observar agora algumas estatísticas.
Sabemos que os Estados Unidos apresentam um bipartidarismo político que, não por acaso, também expressa muito da questão religiosa. Os democratas são geralmente religiosos mais liberais ou mesmo ateus ou agnósticos. Já os republicanos são quase que invariavelmente religiosos conservadores e, não raro, fundamentalistas, como o próprio George W. Bush. Pois bem, é sabido que o mapa político-partidário nos EUA apresenta uma curiosa distribuição desses partidos entre estados “azuis” — cor do partido democrata, representando que a grande maioria de eleitores daquele estado é democrata — e estados “vermelhos” — que lá não é a cor que representa a esquerda política (tal como é no resto do mundo), mas sim a radical direita conservadora, sendo que, portanto, um estado vermelho tem uma maioria de eleitores republicanos e, o que é muito possível na maioria dos casos, de mentalidade religiosa igualmente conservadora. Assim, uma vez que a religião fosse mesmo uma fonte detectável de nossa moralidade, seria de se esperar que isso se refletisse na vivência social das pessoas, a maioria das quais piedosamente religiosa, que povoam os estados republicanos em comparação àquelas dos estados democratas. Mas o que uma análise dos dados nos revela é uma realidade bem diferente:
a) Quando se destacam no mapa as 25 cidades estadunidenses onde os índices de crimes violentos são os mais baixos do país, somente 38% delas estão nos estados republicanos.
b) Das 25 cidades mais perigosas dos Estados Unidos, 78% estão nos estados republicanos.
c) Dos 12 estados com os mais altos índices de assaltos a residências, todos são republicanos.
d) Dos 29 estados com os mais elevados índices de roubo, 24 são republicanos.
e) Dos 22 com os mais altos índices de assassinatos, 17 são republicanos.
Isso, para não mencionar outras estatísticas, como as que Gregory S. Paul apresentou numa edição de 2005 do Journal of Religion and Society [Revista de Religião e Sociedade], que, comparando os dados entre 17 países de economia desenvolvida, revelaram que naquelas nações onde se encontram as maiores taxas de crença num deus criador bem como de culto prestado a tal divindade também são encontradas as mais altas taxas de assassinato, mortalidade entre jovens, mortalidade precoce em relação à expectativa de vida atual, infecção por doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e aborto no caso dos regimes democráticos.
A constatação da pesquisa acima é intrigante justamente porque ela reflete com perfeição outros dados colhidos nos Estados Unidos. Os dados a que me refiro são os dos censos mais recentes realizados lá, onde 80% da população afirma acreditar em Deus e no juízo final, e onde o fanatismo religioso cristão tem se elevado a índices alarmantes, sobretudo para uma nação tão desenvolvida economicamente. Pois bem! Justamente no chamado Bible Belt — “Cinturão Bíblico”: nome por que é conhecida uma região dos Estados Unidos onde a prática fervorosa do cristianismo protestante e evangélico é tão influente que se sobressai na cultura local — foram encontrados os mais elevados índices de divórcio, assassinato, doenças sexualmente transmitidas (sobretudo gonorréia, sífilis e AIDS), gravidez adolescente, e mortalidade infantil. Na verdade, foi uma surpresa para toda a nação descobrir que taxas tão altas de desordens e desgraças sociais eram verificadas exatamente na região em que menos se esperaria ver tantos males prosperando em meio a toda aquela gente que vive seu dia-a-dia recitando passagens bíblicas, clamando o nome de Deus, orando em línguas e cantarolando hinos religiosos.
Por outro lado, observando um dado que chega a ser irônico diante da arrogância daqueles que insistem em que os valores cristãos são a fonte mais eficiente em nos incitar à prática da caridade, a realidade é que os países em que há o maior número de ateus e agnósticos declarados são exatamente os que lideram o ranking, no que se refere ao percentual de sua riqueza investido nos programas sociais internos bem como na ajuda externa aos países pobres.
O filósofo estadunidense, Daniel Dennett, em seu livro Quebrando o Encanto: A Religião Como Fenômeno Natural, comenta como o simples fato de que tais dados existam e sejam reconfirmados a cada nova pesquisa já é mais do que o suficiente para abalar por completo a afirmação de que há uma virtude moral entre as pessoas religiosas. Crer em Deus não torna nenhuma sociedade melhor — pelo contrário, os dados estão aí, verificáveis no mundo todo, para confirmar que as sociedades em que o número de pessoas que acreditam em Deus é maior são exatamente aquelas em que mais encontramos os piores males sociais estabelecidos de uma forma mais ampla. O Brasil, maior país católico do planeta, e onde o número de protestantes e evangélicos não fica muito atrás, é um ótimo exemplo disso. A imensa maioria dos traficantes, assassinos, estupradores e ladrões que encontramos em nossa sociedade vem de algum lar em que as pessoas afirmam acreditar em Deus. O número de presidiários que se declaram ateus é praticamente insignificante — sobretudo se considerarmos o número daqueles que atribuem seu ateísmo a seu conhecimento das ciências físicas e naturais. Os que declaram acreditar em Deus são a grande maioria, ainda que a maioria destes não seja de fato praticante assíduo em nenhuma denominação em especial. Ao mesmo tempo, o número daqueles que se convertem facilmente quando estão na cadeia, virando crentes piedosíssimos em seguida, aumenta a cada dia.
Nesse último caso, chega a ser escandalosamente evidente o mecanismo da culpa instalado em nosso cérebro atuando no processo. Afinal, o cara está preso porque seu crime foi descoberto e julgado. Ele não tem mais como evitar ou negar a culpa. E de que forma mais eficiente o mecanismo de culpa — que não passa de uma tática subconsciente de satisfazer a si e aos outros em termos da possibilidade de retribuição e benefício — poderia atuar sobre nós do que fazendo com que experimentemos uma verdadeira conversão? Uma atitude vista com bons olhos pela mesma sociedade que flagrou sua má-ação e que convença a todos de que você é uma nova pessoa e, o que é mais importante, uma boa pessoa?
Isto não quer dizer que os prisioneiros convertidos sejam hipócritas dissimulados tentando arrumar um jeito de se dar bem (embora seja bem possível que alguns sejam exatamente isso, sim). É provável que as conversões sejam sinceras em muitos casos, talvez até na maioria deles. Afinal, o mecanismo de culpa que a seleção natural instalou em nós não age no campo de nossa consciência. Não necessariamente ficamos fazendo cálculos do que temos a ganhar com nossa conversão dentro de um presídio (o que, vale repetir, não quer dizer tampouco que tais cálculos não possam ser conscientemente feitos por um espertinho oportunista). O que afirmamos é apenas que tal comportamento condiz com a atuação previsível de nosso senso de culpa, agindo em nosso inconsciente. A conversão é em muitos casos verdadeira, portanto, pois o elemento auto-ilusório participante nesse processo faz com que de fato experimentemos o sentimento, a despeito de sua motivação egoísta em nível último (genético). E tudo pesa somente como mais evidência a confirmar que nosso senso moral está diretamente associado à nossa história evolutiva, e não à fé dos homens em Deus, muito menos à moral imoral que a Bíblia tem a nos ensinar.
No fim, a compreensão das raízes de nossa moralidade em nossa (nem sempre admirável) programação genética não quer dizer que não tenhamos motivos para nos orgulhar de nosso comportamento moral. Afinal, o fato de que nossa evolução conseguiu fazer desenvolver um mecanismo tão inteligente e eficiente de controle de nossos próprios impulsos mais básicos e egoístas, que tornariam a formação das modernas sociedades simplesmente impraticável, é algo que não nos desmerece de maneira alguma. Se a auto-ilusão de bondade e caridade nos oferece o equivalente à retribuição requerida por nossos impulsos egoístas naturais, por outro lado, é simplesmente formidável que tenhamos encontrado uma via tão complexa e sagaz que permite, contra todo o “egoísmo insensível” de nossos genes, que experimentemos verdadeiro prazer na cooperação uns com os outros, verdadeiro sentimento de paz interior no auxílio àquela pessoa que jamais veremos outra vez, mas que neste momento precisou de nossa ajuda.
Além disso, é sempre importante ter em mente que o fato de que se verifica o desenvolvimento de códigos morais em qualquer sociedade com certeza quer nos dizer alguma coisa. Se o moralismo religioso é justificavelmente questionável, o fato é que, como demonstrado aqui, isso não significa que qualquer código moral seja indesejável. Pelo contrário: como os parágrafos acima procuraram demonstrar, a moralidade é uma adaptação evolutiva natural em nós, e a própria manutenção da sociedade depende de que mantenhamos algum tipo de código moral aplicável a todos em seu seio, pelo bem da própria convivência social.
Na verdade, tais valores apresentam-se como a forma de colhermos frutos positivos que não nos vêm pelo altruísmo voltado para os parentes nem pelo altruísmo recíproco. E, assim, a moralidade que desenvolvemos ao longo de nossa história nos faz ser mais atenciosos para com o bem-estar geral da sociedade. De forma que, mesmo que a manutenção de um código moral comum não seja a única maneira de garantir a colheita desses mesmos frutos, não há dúvida de que é a forma mais barata e dinâmica. Afinal, para pensarmos num exemplo ilustrativo, se todos nós, em virtude de uma moralidade comum (talvez utópica neste exemplo, admito), decidíssemos não beber antes de dirigir, ou não dirigir depois de beber, no fim acabaria sendo a sociedade como um todo que se beneficiaria disso. Não há o que se discutir quanto a isso! Não é nenhum absurdo concluir que a maioria de nós ficaria melhor com a obediência ao contrato social sendo reforçada por um código moral internalizado do que por meio da repressão policial, por exemplo, atuando em todo lugar à nossa volta. Mas esse código moral, como exemplifica a ética da empatia, não é internalizado de maneira artificial e forçosa como é na moral teísta / por dever.
Tal ilustração de utilidade da obediência ao contrato social é feita por Robert Wright, no capítulo 17 de sua obra O Animal Moral, em que conclui um exemplo com as seguintes palavras:
“Esta é a resposta rigorosa às pessoas que perguntam por que razão termos como moralidade e valores devem ser levados a sério. Não porque a tradição em si seja uma coisa boa. Mas por aquilo que um código moral forte é capaz de oferecer: os benefícios mais impalpáveis da soma diferente de zero, sem a presença ostensiva da polícia.”
Em outras palavras: os bons frutos das relações que nos trazem retribuição, sem precisarmos ser reprimidos e levados a agir à força (por dever, por temor, por interesse egoísta) em nome da boa convivência social.
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¹ = http://camilojr.blogspot.com/2008/05/das-questes-morais-parte-1.html