Cotas raciais
-- O critério é autodeclaração? -- É. -- Quais são as categorias? -- Preto, pardo e branco. -- Mas os nomes dessas categorias não derivam de cores? Essas cores não são propriedades objetivas de peles humanas, até certo ponto? -- Sim. -- Então não é muito sincero dizer que o critério é autodeclaração, se outras pessoas poderão discordar da sua autodeclaração e te acusar de estar cometendo fraude. -- Sim, mas essas pessoas não são parte do processo decisório, são só ativistas das redes sociais. -- E como é o processo decisório? Uma lista de critérios do racismo científico do século XIX? -- Não, aquilo foi um caso isolado. Eu concordo que o caso do IFPA foi escandaloso, mas ninguém tá usando aquela tabela. -- O que estão usando então? -- Bancas examinadoras. -- Para que precisamos de bancas examinadoras, se o critério é autodeclaração? -- Para saber se a autodeclaração é falsa. -- E como sabem que é falsa? -- Usando critérios objetivos... cada avaliador vai saber se aquela pessoa é negra ou não é, e decidem entre si. -- Quer dizer que antes do caso do IFPA, já estavam usando o olho de examinadores pra ver se a autodeclaração de uma pessoa é verdadeira ou não? -- Sim, mas é bem diferente de fazer uma tabela com pontos pra formato de nariz, formato de crânio, cor de gengivas e dentes, textura de cabelo... -- Quer dizer então que seu problema com o caso do IFPA foi só que pegaram critérios que essas bancas examinadoras já poderiam estar usando e os botaram numa tabela? Por que, quando o critério anti-autodeclaração deixa de estar no olho do examinador e passa para uma tabela, de repente deixa de ser aceitável? Você estava confortável com tribunais raciais decidindo quem é negro, quem é pardo e quem é branco no Brasil só porque os critérios que estavam sendo usados para atropelar a autodeclaração eram desconhecidos, obscuros, não postos no papel? -- ...
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As cotas raciais são um regresso a um passado perigoso. O critério da autodeclaração é incompatível com a ideia de categorias raciais recebendo benefícios do Estado. A contradição não é inventada pelos opositores dessa política, ela é intrínseca à ideia de raças e de autodeclarações. Enquanto o governo tenta se proteger da acusação de ressuscitar Lombroso por trás do critério insincero da autodeclaração, os grupos que querem as cotas raciais estão o tempo todo atacando esse critério e querendo botar outra coisa no lugar - e isso, apesar de danoso para a cultura, é compreensível, afinal a ideia de raças sugere que se pode achar isso no mundo, especialmente quando os rótulos raciais são nomes de cores. O caso é que essa outra coisa no lugar é assustadora, especialmente nas mãos do estado. Escondê-la por critérios informais de bancas examinadoras, sem jamais dizer quais são, não a torna menos assustadora e perigosa. O que o IFPA fez foi só deixar escapar à luz do dia o que está acontecendo há mais de dez anos a portas fechadas no Brasil.