A procedência da Odisseia
Resumo da rota histórica que levou à edição que tenho da obra de Homero
A edição em inglês que eu tenho da Odisseia traduzida por Robert Fagles (1996) dá a seguinte procedência para a obra.
Robert Fagles ⬅️ texto em grego editado por David Monro e Thomas Allen, Oxford University Press, 1908.
Monro & Allen ⬅️ texto em grego cursivo de Richard Porson (1759–1808), acadêmico inglês talentoso, mas alcoólatra.
Porson ⬅️⬅️⬅️ primeira edição impressa em Florença, 1488, em que a tipografia imitava o grego cursivo porque "os primeiros impressores tentavam fazer seus livros parecerem manuscritos cursivos porque em círculos acadêmicos os livros impressos eram considerados produtos vulgares e inferiores".
Edição impressa de 1488 ⬅️⬅️⬅️ edições realmente escritas à mão que circularam na Itália por um século.
Manuscritos italianos do século XIV ⬅️⬅️⬅️ manuscritos bizantinos antes da queda de Constantinopla em 1453. Antes de cair, o Império Bizantino preservou a obra por mil anos. A Odisseia era escrita à mão em velino (membrana de couro tratado de bezerros ou fetos bovinos abortados) ou papel.
Império Bizantino ⬅️⬅️⬅️ cópias à mão do mundo antigo, antes da invenção das letras minúsculas e dos espaços entre palavras.
Pergaminhos dos séculos II a V d.C. ⬅️⬅️⬅️ papiros mais antigos. Nesse período os rolos de papiro também foram substituídos por livros (códices). A obra completa da Odisseia exigia até 24 rolos. É possível que os capítulos modernos fossem originalmente rolos separados.
Rolos de papiros mais recentes ⬅️⬅️⬅️ rolos mais antigos de Alexandria, fundada por Alexandre no final do século IV a.C., onde os antigos acadêmicos editaram e escreveram comentários à obra. Os intelectuais alexandrinos fizeram uma edição padrão da Odisseia, antes havia variações no texto. Esses rolos de papiros são encontrados por todo o mundo grego antigo dos séculos IV e V a.C. — é a época em que Sócrates viveu.
Rolos de papiro dos tempos de Sócrates ⬅️⬅️⬅️ possíveis papiros do século VI a.C. Sobrevivem textos que dizem que esses papiros eram recitados de forma oficial em Atenas. Textos de poetas desta época têm clara influência de Homero, suposto autor da Odisseia.
Possíveis papiros do século VI a. C. ⬅️⬅️⬅️ século VII a. C., quando as trevas do esquecimento começam a ganhar dos registros históricos de forma definitiva. Há fragmentos de poetas dessa época que usam expressões e meias-linhas típicas de Homero. Poetas como Tyrtaeus, Callinus, Alcman e Archilochus. Aqui, a influência de Homero é mais hipotética, mas ainda clara para muitos estudiosos.
Século VII a. C. ⬅️⬅️⬅️ Final do século VIII a. C., temos um vaso descoberto na ilha de Ísquia, perto do litoral de Nápoles, com uma inscrição que parece se referir ao copo de Nestor mencionado na Ilíada, a obra-irmã da Odisseia.
A data aproximada de 700 a. C. para o vaso marca o limite do olvido. Indo para o passado, aqui começa a Era das Trevas da cultura grega, em que o pouco que sabemos é de natureza arqueológica. Há vasos geométricos, tumbas, algumas armas.
Heródoto acreditava que Homero viveu 400 anos antes dele próprio, o que o coloca no século IX a.C. O acadêmico Aristarco de Alexandria colocava a vida de Homero ainda antes, 140 anos após a Guerra de Troia, que aconteceu em cerca de 1200 a.C.
Apesar da discordância de datas, todos os estudiosos antigos acreditavam que Homero era cego. Alguns pensavam que ele veio da ilha grega de Quios (Chios), outros preferiam a origem em Esmirna (atual Turquia).
Há a hipótese popular entre estudiosos de que as obras de Homero eram cantadas por ele próprio, iniciando a tradição oral. Mas também há os que acreditam que ele escrevia (neste caso, imagino que a cegueira é descartada ao menos no início de sua vida). Na verdade, a hipótese de Homero escritor era a mais popular até o século XVIII.
Mas Josefo ben Matthias, um judeu do século I d.C., propunha que na época da Guerra de Troia os gregos eram analfabetos. Homero "não deixou seus poemas escritos", então eles foram "transmitidos de memória" e "não unificados até bem mais tarde", escreveu Josefo.
Essa hipótese ganhou popularidade porque os próprios personagens da Odisseia e da Ilíada não sabem ler e escrever. Parece que Josefo tinha razão, conta a edição de Fagles, detalhando como se sabe hoje que o alfabeto grego foi inspirado no dos fenícios. As palavras "alfa" e "beta", que rotulam letras do alfabeto grego, não têm significado em grego. Em fenício, "aleph" e "beth" significam "boi" e "casa", respectivamente. A grande inovação dos gregos foi dar letras para as vogais, criando o alfabeto mais eficiente da antiguidade. Os fenícios, como outros semitas, só davam letras para as consoantes.
Assim, Homero é tão profundo no tempo que discutir a origem de suas obras nos obriga a discutir até a origem das letras.
No século XVIII, o acadêmico alemão F. A. Wolf reviveu a hipótese de Josefo sobre Homero ter sido tão analfabeto quanto seus personagens Odisseu e Aquiles. O filósofo napolitano Giambattista Vico, um século antes, propôs que os poemas homéricos eram uma criação não de um só homem, mas de todo o povo grego. Era a rebelião romântica contra a ideia iluminista de que grandes obras precisavam de gênios individuais como autores.
O período romântico se empolgou tanto com essa ideia que surgiram falsas obras de autoria coletiva. Como um herói chamado "Ossian", cuja história tinha admiração de Goethe, cujo autor real não era o povo gaélico, mas James Macpherson. Era o livro favorito de Napoleão Bonaparte, aliás. Onde o romantismo foi parar com essa história de exaltar demais a força criativa de povos nativos vocês sabem bem do que aconteceu na Alemanha.
Se ao menos Goethe e Napoleão fossem contemporâneos, para defender a criminalização das fake news...
Os adeptos da herança oral também debateram acaloradamente se a Odisseia e a Ilíada eram baladas mais curtas que foram costuradas juntas, cada um com um critério diferente para separar uma balada de outra. Mas temos exemplos de obras longuíssimas passadas de memória entre gerações. A geração iluminista dos livros subestimou a capacidade da memória humana.
Histórico ou não, analfabeto ou não, não dá para entender nossa herança cultural sem Homero.
Cante para mim sobre o homem, Musa, o homem de reviravoltas
Desviado de seu caminho tantas vezes, após saquear
As sagradas alturas de Troia.
Assim começa, em inglês claríssimo e sem floreios desnecessários, a tradução digital de Robert Fagles que tenho em mãos. Ao traduzir para o português, vejo-me obrigado a fazer adaptações às palavras que leio. Mais de três mil anos após terem sido criadas pela primeira vez na cabeça de alguém, em uma terceira língua que ninguém mais fala exatamente como era falada.
Caracas… como diria na minha terra…